sábado, 30 de agosto de 2014


 CRÍTICA AO ESTATUTO DA CRIANÇA

            E DO ADOLESCENTE     -  E C A 

 

 

                                    
                                               O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990,  expressou um grande avanço na doutrina de atendimento à infância e à juventude, transportando para a legislação especial  os princípios  da  “doutrina da proteção integral”  adotada pelo Brasil desde a ratificação da  Convenção sobre os direitos  das crianças, anteriormente à própria Constituição de 1988, onde   foram expressamente incluídas (art. 227). Contudo, cabem, a nosso ver, críticas quanto à sua execução, talvez não exatamente as mesmas feitas ao Código de Menores de 1979, mas sob o mesmo fundamento: não há uma política em concreto para a sistematização das medidas descritas  na lei especial.

                                               A principal medida em concreto deveria ser a criação e provimento de um órgão do Executivo para a coordenação  das medidas previstas, com poder de mando : a doutrina da proteção integral é fundada na responsabilidade do Estado em relação à formação da sua infância e juventude. Tratando-se de um Estado Nacional, embora federativo, há de se  supor a necessidade de uma integração entre todas as  formas  de manusear  as soluções para pontos  de  deficiência  na sociedade , de maneira integral, no  trato da educação da infância e da juventude. Da forma como está  no Estatuto, nota-se a necessidade de uma regulamentação. Muitas atividades se encontram  colocadas em forma um tanto quanto difusa, distribuída  a entidades para as quais não são exigidas condições técnicas, como os Conselhos Tutelares  (art. 131) e, ao mesmo tempo,  retirando-se os Centros de Triagem, Observação e  Permanência, não há  um órgão administrativo que possa proceder a uma separação, e a sua manutenção, entre os adolescentes objeto de internação antes da decisão final no processo, na qual  podem ser inocentados, e aqueles já em fase de cumprimento de uma sentença definitiva — ocorre, pois, em  caso das crianças e adolescentes que tanto se quer proteger, o mesmo  problema observado , em determinados locais, quanto aos adultos, onde nos mesmos estabelecimentos prisionais são colocados   indistintamente  elementos de maior e menor periculosidade penal.

                                                A destinação de um corpo de profissionais atuando junto ao Juizado de Menores, apenas na fase executiva das medidas, não prevendo  a sua atuação efetiva em casos onde não cabe o processo para apuração de infrações  e nem colocando a sua assistência como uma garantia processual (art. 111), a nosso entender retira a recomendação da UNICEF (ver Quadro 6, na página 97, onde  se transcreve parte dessas recomendações) , do tratamento multidisciplinar e interdisciplinar  da problemática  da situação de perigo a ser prevenida em geral ou especialmente.
 
 
                                                


                                                É bem verdade que  os antigos centros  de encaminhamento do menor para internação, inicialmente o SAM e, depois , a FUNABEM, não alcançaram a finalidade para  a qual foram idealizados, tornando-se , até mesmo, perniciosos à obtenção de resultados positivos : contudo,  isso não se deveu  às orientações legislativas, mas, isto sim, à péssima execução das medidas orientadas pela legislação, que se fez  sem técnica  especializada, por  leigos indicados por designação política, e  com funcionários despreparados, que se transformaram, com o tempo, em algozes  e não educadores e encaminhadores de personalidades em formação. Esse é o nosso receio que ocorra também  agora, de uma forma mais difusa e mais difícil de ser detectada, através  de  uma indicação  pelo próprio corpo social,  de pessoas para as quais também não se exige o preparo técnico que o encargo , bem mais um “múnus  público”,  exige, no trato  de seres tão desprotegidos.

                                                Mas o principal, para a execução de qualquer programa, quanto mais esse previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, é a destinação de verbas orçamentárias para os serviços necessários à sua implantação  e continuidade, sejam eles  terceirizados ou não, pelo Estado.

                                                Militei como Curadora de Menores, época em que  apresentei a tese de mesmo nome que deu origem a este livro. E, depois, como Juíza de Menores , em Comarcas do Interior de Estado do Rio de Janeiro, pude analisar toda a legislação pertinente, e sua aplicação, tanto a de 1927 quanto a de 1979.Agora, decorridos trinta  anos, tendo acompanhado empiricamente a evolução doutrinária internacional  sobre o assunto,  o condicionamento da situação do menor durante esse período, bem como  o desenvolvimento  tecnológico  que deu origem a novos problemas envolvendo a nossa juventude , observei  o recrudescimento do consumo de “drogas ilícitas” com espetacular disseminação em todos os níveis da estratificação social. E mais  me firma o entendimento da necessidade de duas  atitudes , por parte do Estado, que coloco nessas considerações : 

                                               1ª. - A transformação dos Juizados da Infância e da Juventude em Juízos  Colegiados,  compostos por  um juiz togado e pelo menos  dois leigos, sendo um  com especialidade técnica  que englobe Pedagogia, Educação e Psicologia Infantil, e outro indicado pela Ordem dos Advogados do Brasil, porque :

                                         
 
                                               a -  trata-se , o encaminhamento  e educação da juventude, de  matéria  de interesse estratégico de Estado, visto que esse contingente de seres humanos, em  desenvolvimento físico, mental e psicológico , é o alicerce do futuro   da própria Nação e  deve ser encarado pelos governantes de uma maneira prioritária, sendo o Direito do Menor, em nossos dias, em consonância com a moderna doutrina da “proteção integral” em nosso país e na maior parte das nações civilizadas,   de uma abrangência que vai muito além  daquelas situações de abandono material pela sua família, envolvendo  áreas muito diversificadas do conhecimento, até mesmo de relações internacionais;

                                                b – em todas as áreas de atuação do Estado está sendo propugnada a especialização profissional, em consonância  com a evolução da técnica administrativa  e da globalização  das relações humanas, a par de  grandes modificações de parâmetros  morais e éticos da sociedade ocidental, onde nem sempre o abandono do menor é material, mas essencialmente emocional e psicológico, porque a sociedade  industrial consumista tem imposto a ambos os responsáveis pela família  a ausência permanente do lar , deixando de dar atenção  à educação das crianças envolvidas – esta é uma constatação  que se tem observado das ocorrências indisciplinares nas escolas, de grau simples a acontecimentos de trágico vandalismo e agressividade, envolvendo o setor público e o privado, devendo-se levar em conta que  a “escola” não é destinada a substituir o educador doméstico; 

                                               2ª. – Exigência, para assumir o cargo de Juiz da Infância e da Juventude (togado) e de Promotor de Justiça em exercício nos respectivos juízos de primeiro grau, de especialização em Direito do Menor e  de noções  de Psicologia, Pedagogia, e Psicologia Infantil, em cursos a serem ministrados pelas  Escolas Nacionais ou Estaduais da Magistratura e do Ministério Público, tendo-se em vista que :

                                                a – a gama de atribuições dos juizados encarregados de fazer cumprir toda a política da “proteção integral” aos menores  é muito grande e especializada, e não houve ainda adaptação , nos  concursos  para Juiz de Direito e Ministério Público, no Brasil, para se contemplar , dentre as matérias que os compõem, a Legislação de Menores, que envolve  multidisciplinaridade estabelecida constitucionalmente e em   Convenções e Acordos internacionais, e nem os Códigos de Organização Judiciária exigem  dos magistrados,  para assumirem os respectivos Juizados da Infância e da Juventude, essa especialização;



                                                b - concentrar-se num mesmo concurso para a Magistratura ou para o Ministério Público , na forma como  se compõem as provas de conhecimento, abrangentes de todas as áreas  do Direito, uma  especialização técnica  envolvendo  a Psicologia, a  Pedagogia, a  Antropologia, a  Educação  e a  Legislação,  cuja interdisciplinaridade é essencial  à execução de medidas assistenciais e protetoras da infância e da juventude, implicaria em exigência da prova de  graduação específica que nossas faculdades ainda não oferecem;

                                               c - o curso de especialização nas Escolas Superiores da Magistratura e do Ministério Público, a nosso entender, atenderia à necessidade de implantação imediata  de juizados adequados à demanda técnica em matéria tão específica, para pessoas  com conhecimentos jurídicos  demonstrados  em concurso e que realmente estivessem decididas  a essa nobre e envolvente matéria; e, por outro lado, não haveria, nem para as Escolas da  Magistratura, nem para as do Ministério Público, a mesma burocracia exigida  para a regulamentação de um curso em uma Universidade regular, junto ao Ministério da Educação, dada a singularidade da legislação  pertinente a elas.            
                                   
                                       Embora  o Código de  1979  estabelecesse, em seu art.  9º., a existência de  centros especializados de triagem e observação , o que dava a idéia de uma atividade anterior à  fase de execução, os que foram criados e tiveram vida jurídica, não exerceram,  na prática, essa finalidade —  o estudo social, médico  e  psicopedagógico do educando . O Estatuto de  1990   não  contempla   essa função ao órgão de internação , pois que  o juiz, ao aplicar  a medida ao adolescente, em sentença , deverá  estabelecê-la já  levando  em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração (§1º. do art.112) – é bem verdade que  alicerçado em pareceres técnicos, mas constituindo um acúmulo de responsabilidades para  um único ato em uma única fase processual, quando para o delinquente adulto  é reservado um  tratamento de execução diferenciado da fase cognitiva. Os critérios  exigidos para os estabelecimentos  onde se dará a medida são apenas os do art. 123: “A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida  rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração”. Não há, pois,  na lei especial em vigor , a determinação de um  tratamento diferenciado  entre quem esteja provisoriamente internado na fase cognitiva ,  e aquele cumprindo  decisão definitiva com possibilidade de um convívio prejudicial ao primeiro – no caso presente, embora não haja uma centralização como a ocorrida no passado, não existe  um órgão  centralizador  do acompanhamento da atividade tecnicamente uniforme à execução das medidas preconizadas no Estatuto.

                             
 
                                       O Estatuto  da Criança e do Adolescente destinou aos juizados  especiais  para assuntos de menores de idade  uma gama  enorme de atribuições de administração pública, apropriada  a políticas de governo, muito mais do que à  administração da justiça. É bem verdade que se indaga, a nível da filosofia do direito, qual a extensão da noção do justo em comparação com o legal.  Mas a função do magistrado, e do membro do Ministério Público, de fazer cumprir a lei, fica demasiadamente exposta desde que ele  deva tomar a si as providências  que dizem respeito  a  aspectos  de problemas sociais, cuja solução não  incumbe ao Poder Judiciário como  função institucional. A concretização da proteção integral, dentro de um modelo de responsabilidade social adotado pelo Brasil, não  pode ser  colocada em mãos de apenas um responsável, o Juiz,  cuja infraestrutura  funcional não lhe fornece meios  financeiros e  de pessoal  para  reformar uma  realidade social : somente um órgão com  dotação orçamentária ampla, com autoridade administrativa suficiente para influir na condução de outras áreas  da administração federal que coordenam as políticas dos desenvolvimentos regionais e nacionais,  tem  a condição estrutural de atender à máxima estabelecida, por exemplo, no art. 4º., parágrafo único , alíneas “c” e “d” , em consonância  com os artigos 94 e  98 . E nem ao Conselho Tutelar, pela sua composição não técnica   e pela falta  de capacidade de mando,  pode-se entender que o legislador desejou delegar essa competência. 
 
                                               Tomemos um exemplo em concreto. Em uma grande cidade, como Rio de Janeiro ou São Paulo, havendo uma criança, ou várias, com seus pais, que não têm condições financeiras  para pagar planos de saúde, mas são pessoas muito honestas, imprimindo ao seu lar as condições ideais de  desenvolvimento psíquico dos seus filhos, é possível  que o Juiz da Infância e da Juventude  tenha condições de  fazer o seu encaminhamento prioritário  para atendimento em um hospital municipal ou federal —  mas são milhares de crianças nessa situação e se o Estado administrador não  tiver dado as condições  necessárias do nosocômio para fazer o atendimento, não terá o magistrado  uma fórmula legal para  conseguir  o que determina o inciso III, do parágrafo único  do artigo 100.  Se esse mesmo exemplo se aplicar a uma criança, nas mesmas condições, em uma cidade pequena, onde não haja recursos  suficientes, sequer um plano de saneamento básico, então será impossível  a atividade judicial – os atos serão reduzidos a termo, ordens serão expedidas a órgãos e pessoas inexistentes! E estará , em qualquer caso, imperando ainda a grande diferença social que  tem nos caracterizado ao longo de  muitos anos. O problema a se resolver, é de infraestrutura social, de competência do Poder Executivo e, não, do Judiciário.

                                               A propósito, um comentário da UNICEF:
 
“Onde a maioridade penal for especialmente alta, como 17 ou 18 anos, é possível que o sistema de justiça juvenil do país seja em grande parte voltado para o bem-estar do jovem. Em tais sistemas jurídicos , não se diz que crianças e adolescentes cometeram um “crime”, já que todo o comportamento da criança é visto como um assunto social, educacional e ligado ao bem-estar. ........................... Onde a maioridade penal for mais baixa, é mais provável que os sistemas legais do país façam uso de juízes e tribunais para crianças e adolescentes. [(Tradução livre) Manual da UNICEF, páginas 27 a 28 – (Manual para a Medição dos  Indicadores da Justiça Juvenil - United Nations, Office on Drugs and Crime- The Indicators).
 
                                               Entendo,  há algum tempo, pois, a necessidade de um órgão  diretamente vinculado à Presidência da República, especificamente uma Secretaria de Governo, agora com mais urgência, dado o elevado grau de periculosidade das situações  sociais em relação aos menores, notadamente o problema das “drogas ilícitas”, da pedofilia e da desagregação familiar. Tal órgão seria encarregado: (a) da fiscalização e coordenação  de todos os  órgãos e colegiados envolvidos na política da infância e da juventude,  integralizando a proteção  geral ,(b)  de atividade abrangente de  todo o país,  com recursos  previstos no Orçamento anual, (c) de  apresentar  Planos Anuais e Plurianuais de apoio à infância e à juventude, e  (d) de manter  inter-relacionamento   funcional estreito  com todos os Ministérios, Governos dos Estados e dos Municípios, com   atividades afins a essa política.  E para esse entendimento encontro   respaldo  nas  recomendações  da UNICEF ,  dentre as quais as seguintes, mais  específicas sobre o tema analisado :
 

 
 
 
Manual para a Medição dos  Indicadores da Justiça Juvenil
Nações Unidas – Escritório para Drogas e Crime – Os Indicadores – pág. 25
[Tradução livre do texto  - United Nations, Office on Drugs and Crime-  Manual for Measurement  of  Juvenile Justice  Indicators – p.25 – encontrável  no “site” acessível na Internet pelo  endereço
 
 
 
Padrões
Internacionais
Aplicáveis
 
• Os Estados Membros  se empenharão em desenvolver condições  que assegurem para a juventude uma  vida significativa  na comunidade,  que ,  durante  este período da vida, em que  ela ou ele é mais  suscetível de comportamento desviante,  vão   fomentar um processo de desenvolvimento pessoal e educação , tão livre do crime e da delinquência quanto possível.
 
•Planos de prevenção compreensiva  deveriam  ser instituídos em todos os níveis do Governo e incluir o seguinte :
a) análises  profundas do problema e inventário dos programas;
b) responsabilidades bem definidas  para agências qualificadas , instituições e pessoas  envolvidas nos esforços de prevenção;
c) mecanismos para  a coordenação apropriada dos esforços de prevenção;
d) fiscalização, programas e estratégias baseadas em  estudos de prognósticos a serem continuamente monitorados e  cuidadosamente  avaliados;
e) métodos  para reduzir efetivamente a oportunidade de cometer atos delinquentes;
f) envolvimento da comunidade através de uma larga gama  de serviços e programas;
g) cooperação interdisciplinar  bem próxima;
h) polícia de prevenção  e processos  sobre a participação da juventude na delinquência;
i) pessoas especializadas em todos os níveis (PJD, artigo 9);
Como um Indicador Político, esse indicador  mostra quando  existe um plano  para a prevenção  da delinquência infantil.
Planos para prevenir a entrada das crianças em conflito são normalmente formulados  no nível central de governo.  A legislação e  as políticas de governo , padrões e diretrizes deveriam ser  examinados  para verificação da existência de um plano de prevenção da existência de conflitos com a  lei  sobre menores. Fontes de informação  no governo central deveriam confirmar a existência de um plano  e sobre a estrutura desse plano.
Um plano de prevenção deve incluir, tipicamente, programas ou políticas para :
-  apoio às  famílias  para proverem a subsistência de  seus filhos;
-  desenvolvimento de  redes de comunidades-base para crianças vulneráveis;
- apoio  de  padrões flexíveis de trabalho para pais e serviços para famílias de pouca renda;
- treinamento  para oportunidades de trabalho ou  orientação vocacional para crianças;
- abolição de castigos corporais e redução da violência doméstica;
- prevenção de abuso de   drogas, álcool e  outras substâncias por crianças;
-  oportunidades de educação que  ofereçam uma alternativa ou adição ao currículo escolar regular;
- esporte e atividades culturais para crianças ; ou
- divulgação de informações sobre os direitos das crianças.
Para bem qualificar  esse indicador, deveria ser feito um plano de prevenção , no mínimo,  existente em uma lei ou política de governo , e contendo mecanismos  para sua implementação e coordenação.
 

                                               Nós que  trabalhamos  sob a égide  da lei de 1927 e depois acompanhamos as duas que  a sucederam, pudemos observar , no espaço de tempo decorrido entre elas, o agravamento dos problemas existentes  e o surgimento de outros, no âmbito dos menores, não só nas comunidades  onde vivem as famílias de pouca renda, mas em todos os estratos sociais, quer em grandes metrópoles, quer em cidades pequenas. São fatos que não podem ser  contornados ou resolvidos pelo Poder Judiciário,  pois  este não pode influir sobre a sua origem, que não está afeta  à condição  da administração da justiça, mas, sim , a políticas  de governo que acompanhem as realidades existenciais da nova sociedade industrial e tecnológica , em um consumismo crescente – lembrando-nos, sempre, de que é interesse prioritário do próprio Estado zelar pela boa formação física, cultural e moral das  futuras gerações que irão comandar os rumos da Nação.  
 
 
                                               Nos  próximos  títulos deste trabalho apresentamos  uma análise da problemática  da delinquência infantil e juvenil, suas origens e evolução  na sociedade atual  e sugestões a médio, a curto e a  longo prazos,   a nível sociológico, antropológico e psicológico ,  de soluções  possíveis, em um tratamento multidisciplinar e interdisciplinar. A  situação de perigo a que estão expostos nossos jovens  ocorre   em razão de um complexo de causas  de profundas cisões no seio da sociedade, e sua  solução passa muito profundamente  pela necessidade  da implantação de um código moral e ético que atenda os novos desafios  do ser humano de  sobreviver como espécie em face da quebra de antigos paradigmas  sociais e dogmas religiosos, frente às descobertas científicas e da falta de perspectivas que  enfrenta a nossa juventude, como um todo planetário. 

                                               Nossos jovens, em sua grande maioria, na sua rotina de vida no lar, não só no Brasil, mas em todo o planeta, não podem contar com o auxílio dos membros mais velhos das famílias:  pois estes necessitam estar distantes para prover o suprimento dos bens de consumo,  e se encontram perplexos diante das mesmas indagações  existenciais, sem respostas satisfatórias para o encontro de novas perspectivas para a nova geração, até mesmo pela falta de tempo para dedicar-se a esse setor da psique humana. Intenta-se provar, ao final, que  a falta de recursos  financeiros  das famílias não é uma variável  exclusiva  para  uma situação de perigo  a que estão expostos  não só os menores  , mas o todo familiar. Muito embora ela  possa ser facilitadora – tão facilitadora quanto  a falta da fiscalização contínua e da  presença  física  paterna e materna na educação  de sua prole, esta ocorrente em todos os níveis econômicos da sociedade moderna. 

                                               Em que pese todo o esforço despendido pelos  Juízes da Infância e da Juventude ,  e pelos  Promotores de Justiça, pelos  Defensores Públicos e  pelos Advogados, se não existe uma política de governo administrada por um órgão central  com recursos suficientes para  a aplicação em todo o território nacional, não  há como darem conta da tarefa hercúlea que lhes impôs  o novo Estatuto da Criança e do Adolescente. E nem é justo que se lhes destine, ao final, a responsabilidade por não  ter sido conseguida a proteção integral  abraçada na Constituição Federal.  

                                               Por outro lado, a complexidade dos conhecimentos humanos, que se reflete nas relações sociais , estão a exigir um tratamento multidisciplinar na solução da problemática da delinquência juvenil – até mesmo porque a criminalidade adulta, para a qual se dirige aquela, já se encontra também multidisciplinarizada. E por isso é necessária a complementação   da formação dos profissionais que tratam diretamente com esse componente  social , com um acréscimo , à sua formação profissional específica, de  conhecimentos razoáveis   em pedagogia e psicologia infantil  -  as nossas crianças  de hoje apresentam um desenvolvimento intelectual que está a exigir uma  correspondência nos adultos encarregados de seu acompanhamento, sob o risco de não  conseguirem impor a  necessária confiabilidade  nas providências que devem tomar a seu respeito, por estarem defasados das  suas realidades e de seus anseios. 

                                               Essa preocupação é  decorrente do fato  de se tratar,  o universo de indivíduos sujeitos  à lei especial, de  possuidores de “status sui generis”,  por não terem condições  de  entendimento integral  dos fatos  e ocorrências  a que estão submetidos   ou  de se conduzirem  de acordo com esse conhecimento. Um outro complicador se oferece à delinquência juvenil nos dias de hoje : embora em situação de perigo físico, emocional ,psicológico ou moral, dado o seu fácil acesso às comunicações, as crianças e jovens se  encontram detentores de conhecimentos tecnológicos das modernas  descobertas científicas, que nem todos os adultos profissionais, excelentes  em determinado setor, conseguem acompanhar – e essa disponibilidade  tecnológica, em  conjunto com a fragilidade  social, pode se constituir em uma nova fonte facilitadora   de delinquência juvenil. 
 
                                               Mas    temos  um progresso grande — o Estatuto da Criança e da Juventude demonstra, em tese,  a vontade atualizada de  lidar positivamente com o problema, seguindo todas as orientações da Convenção Internacional sobre os direitos   das Crianças, promulgada  pelo Decreto nº. 99710/90.   

                                               Aponte-se, por oportuno, a grande preocupação do legislador constituinte brasileiro, ao  introduzir, em 1988, os princípios da Convenção sobre os direitos das crianças, mesmo  antes da sua promulgação, no art.227 da Carta Magna. Contudo, entendo faltar ainda  a realização,  “in concreto” de medidas destinadas à sua execução, posto que o ECA é mais uma legislação enunciativa .  Essa concretização  deve  começar pela   destinação  de verbas especiais no orçamento  da União, dos Estados e dos Municípios,  para a implantação de uma política  nacional,  coordenada  pelo Poder da República  encarregado da administração da Nação.  É mais uma etapa que devemos galgar,  no Brasil,  para podermos  chegar, em futuro não muito distante, a realizações positivas  no campo  da assistência  à nossa infância e juventude. Invoco  o testemunho  filosófico de Marilena Chauí, para embasar essa  minha afirmação : 

             "Se nascemos numa sociedade que nos ensina certos valores morais -- justiça, igualdade, veracidade, generosidade, coragem, amizade, direito à felicidade -- e, no entanto, impede a concretização deles porque está organizada e estruturada de modo a impedi-los, o reconhecimento da contradição entre o ideal e a realidade é o primeiro momento da liberdade e da vida ética como recusa da violência. O segundo momento é a busca de brechas pelas quais possa passar o possível, isto é, uma outra sociedade, que concretize no real aquilo que a nossa propõe no ideal.(...)O terceiro momento é o da nossa decisão de agir e da escolha dos meios para a ação. O último momento da liberdade é a realização da ação para transformar um possível num real, uma possibilidade numa realidade"(Chauí, p. 365).
             
                                                Não se deve entender , com essa sugestão, que será dispensado o corpo técnico previsto no ECA para assessoria às Varas  especializadas em problemas da Infância e da Juventude : não se pode exigir  de um único indivíduo o conhecimento   multidisciplinar profundo,  para a solução  da problemática do menor. Trata-se de um assunto que envolve , por sua natureza, a concorrência de  equipes  que completem , em suas respectivas áreas técnico-científicas, a  resposta à implantação de medidas adequadas ao acompanhamento da evolução  psíquica e moral do indivíduo cujo caráter está em formação, entendendo até que ponto falhou a família  e como  lacrar essa lacuna : devem existir equipes criminológicas, quer em  Centros de Assistência e Proteção dos Menores  , quer em  Conselhos Tutelares (os primeiros, órgãos estatais  previstos  no revogado Código de Menores e , os segundos,  estabelecidos pela própria  sociedade, não jurisdicionais, previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente).Essas equipes devem estar  acompanhando efetivamente  os trabalhos  do Juiz, durante todo  o processo e  lhe dando, no seu curso e ao final, antes  da sentença, parecer sobre a personalidade do    sujeito do mesmo,  e a natureza das causas, endógenas ou exógenas, do desvio de sua conduta, com recomendação dos melhores métodos e medidas a serem aplicados, nos termos da lei, para a devida correção, a par das outras tecnologias  envolvidas nessa pesquisa – eis que  um   indivíduo em formação é  não somente   autor de um fato que se presume  desviante,  mas também  vítima  das circunstâncias sócio-antropológicas  vigentes  na sociedade a que pertence e que o condicionam ao comportamento observado. Comportamento esse que nem sempre  é indicativo  de  uma maior ou menor periculosidade  do  ato  ou do autor,  mas  representa uma resposta desesperada  a  circunstâncias  acima do seu entendimento e fora  e  seu  controle, que o arrastam  para respostas  nem sempre adequadas, se  examinadas de um ponto de vista  de um indivíduo    formado, adulto. Respostas  estas que mais  indicam  o dano  que  está sendo causado  a  ele, e, portanto, mais vitimizado do que  desvirtuado.

                                                É deveras lamentável que não se haja, ainda,  atentado para essa particular vitimização da sociedade como um todo, pois o menor é participante ativo da vida nacional,  como componente dessa sociedade, mesmo  ainda em período de formação física e moral — principalmente porque o problema dele, quando o desvio de conduta se dá em larga escala, é um indicador  de que alguma coisa está errada  na base do corpo social inteiro e não apenas  naquele específico contingente. A solução do problema do menor, pois, além de merecer  um atendimento especializado, indica também a necessidade da revisão de determinados comportamentos  sociais que estão na sua origem. E, para tanto, são necessárias  medidas que, por divisão de  poderes constitucionalmente  determinada, vão muito além das regularmente  destinadas a se imporem  pelo Poder Judiciário .  

                                               A  nosso ver,  necessário seria , desde já, dar-se  uma ênfase nesse  ponto tão essencial  para o futuro  mesmo  da Humanidade como espécie, pois o problema da proteção ao menor não é uma singularidade brasileira. A aplicação de mecanismos de  técnica psicopedagógica, acelerando-se os procedimentos necessários para sua implantação, em todas as áreas do Governo, federal, estadual e municipal, que se coadunem com o espírito da legislação atual, impõe-se, pois um bom  planejamento ideológico muitas vezes falha porque lhe falta uma boa  técnica ao ser aplicado.

                                               Por outro lado, entendo que  o estabelecimento de prazos fatais para  aferição das medidas a serem aplicadas às pessoas em formação,   também é  um procedimento perigoso, pois nem todos  respondem com a mesma rapidez  aos estímulos recebidos e, por vezes, parar um processo de recuperação da personalidade  antes de seu final pode trazer consequências piores do que não o  iniciar . A propósito, comentário do Professor Rogério Greco:

                       "Uma vez completados 18 anos, o agente torna-se imputável, podendo-se atribuir-lhe uma sanção penal. Assim, no primeiro minuto da data de seu aniversário, independente da hora em que nasceu, o agente adquire a maioridade penal com todas as implicações dela decorrentes". [grifo nosso.] (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Ed. Impetus, 2006, pág.428). 

                                                É de se ressaltar, ainda, que essa atitude , de não imposição do método científico à aplicação de procedimentos em relação  à prática da lei de menores , vem contrariar as diretrizes que norteiam os princípios da aplicação da pena, no Código Penal, onde o respeito à personalidade do delinquente (que já superou a idade juvenil)  é dado de  muita importância – isso é decorrência de um  acurado estudo antropológico e criminológico, que não se estendeu, ainda, ao ser  infanto-juvenil. O art. 387, item IV, do Código de Processo Penal, é  um  exemplo  que  se aplicaria com muito mais razão  ao Estatuto da Criança e do Adolescente, pois   estes têm  muito mais possibilidade de recuperação do que  um adulto (item inserido no art. 387, inciso IV, do Código de Processo Penal em vigor, pela Lei nº. 6.416, de 24 de maio de 1977: obrigatoriedade do juiz  de declarar, na sentença,  “se presente, a periculosidade real” e imposição das “medidas de segurança que no caso couberem, se existentes”). No que se refere ao indivíduo em formação,  um laudo  de especialistas indicaria  as medidas  aplicáveis, caso a caso, em concreto,  não se apreciando  tão só  a conduta, em si : nesse particular, o estudo de fatores exógenos, tais como o ambiente  familiar  em  que  menor  mantinha convivência  antes  e durante  o fato,  e do meio ambiente social que  o cerca, a par  de fatores  endógenos , já indicaria, desde o início, até onde  a família natural ou substituta deve  ser cogitada ou deve estar preparada  para  aplicar as medidas necessárias.
 
 
 
                                                E, por outro lado,  a remissão, prevista no art. 126 da lei especial , apesar de ser causa de exclusão  (competência do Ministério Público) ou  suspensão ou extinção  (competência do Juiz)  do processo, não implica em afirmar inexistência de uma particular periculosidade, por fatores exógenos ou endógenos, por isso mesmo havendo a possibilidade  de aplicação de eventuais medidas previstas  no mesmo instrumento legal — como um reconhecimento, sim, de  necessidade de um tratamento especial a determinados remissos, em outras palavras, de medidas de segurança. 

                                               Qual será  a   pior  injustiça  social : submeter-se alguém , já adulto, com presunção legal   de responsável , ou um jovem inimputável  a processo onde está em jogo seu direito à liberdade, sem as garantias mínimas constitucionais?  Ou em corolário,  não se cercar  o processo aplicável  aos menores  de idade  das  mesmas ou maiores  garantias   ou medidas  de segurança  indicadas  para  os adultos?
 



                                               Ressalte-se, em resposta, que o adulto, ao adquirir a maioridade civil e penal, torna-se  partícipe  do pacto  social e, portanto, obrigado  a cumprir e fazer cumprir as  leis  estabelecidas  pelo Estado, que, por seu lado, tem o direito e o dever  de  exigir-lhe tal conduta, porque já será, então, plenamente responsável.  No caso  da criança ou do adolescente, se  o Estado não lhes  reconhece  a aptidão do  indivíduo participante   do pacto social,  tem  a  obrigação  de zelar  pela  sua  formação,  substituindo-o,  por  ser entendido como  irresponsável ou inimputável,  perante a sociedade. E nesse  processo de substituição,  o seu dever  de   bem encaminhar  a sua criança e adolescente  para a  plena  cidadania  se coloca acima da célula familiar. E se essa é falha, em um contingente considerável, incumbe-lhe  substituir-se a  ela, ou substituí-la  por  outra forma  adequada de intervenção que melhor atenda  aos interesses  da coletividade  e  do  indivíduo,  em si. Não  lhe sendo  possível  exigir o que  reconhece não ter direito de exigir,  incumbe ao agente ou Estado, criar  e  oferecer as condições  de exigibilidade àquele que de futuro será o seu paciente (o indivíduo em formação). Ou então, terá criado  uma situação  de incongruência, pois parece  descuidar  da formação para aguardar  o momento da punição. E  , neste caso,  a  idéia  de   recomposição  da paz  social e da ressocialização  do  indivíduo  infrator  não  é   conseguida, pois a  infraestrutura, no passado, à  época em que  se  forma   a individualidade, foi descuidada, e não há mais condições  de reestruturação  da personalidade que delinquiu. 

                                               Em outro  ponto de vista, embora   haja  a previsão da remissão,  no Estatuto da Criança e do Adolescente , instituto  análogo ao  perdão judicial , do Código Penal, não se previu , no primeiro caso, a adoção de medidas de segurança. E, embora   seja previsto para os menores, na  lei vigente,  a aplicação  do Código de Processo  Penal,  a  imposição dessas  medidas somente  poderia  ser  feita se prevista   expressamente no ECA,  em razão  da proteção constitucional  dos direitos humanos. Sim, porque há de se convir que não se deve idealizar o menor u, para aquilatar da conveniência  dessa medida — não em caráter de medida judicial, mas administrativa.  Se não houver um acompanhamento da evolução estrutural da personalidade do jovem  embrionariamente  em situação irregular, há o perigo de haver  uma  influência nefasta sobre ele pelo meio onde vive, dada sua fragilidade pessoal, um  incentivador  de comportamento desviante. Em  casos  de   remissão, apesar de  não haver    uma sentença condenatória, ainda assim  o Estado  tem obrigação de zelar  pelo futuro do seu cidadão, até  como proteção de sua soberania – mas não o Juizado da Infância e da Juventude, pois o assunto não chegou a ser objeto de execução.

                                         
 

                                               O  indivíduo em formação, não encontrando  no seu  meio natural a proteção devida, tem o direito   constitucional de  receber   diretamente  do poder público o atendimento   a suas  necessidades de  um sadio desenvolvimento, não sendo para isso  necessária a prova de um comportamento infracional, até, em contrário, antes dele – daí a necessidade de um órgão da administração  do governo  estar  em coordenação de programas  de proteção ao menor. Mas por outro lado , a sociedade organizada tem também o direito de ser protegida.  E, se  o poder  público  não oferece  condições materiais para  educar, em sentido amplo e estrito,  o  menor de idade sob sua soberania,  é certo  que  muito  menos  as terá  para  a reeducação do adulto perigoso  em que ele poderá   se transformar  —essas condições  de educação e reeducação  devem ser,  mais especificamente, oferecidas em  instituições  apropriadas  a essas finalidades, não só visando  à  recuperação do  paciente, mas também   à preservação da liberdade  de ir e vir da  coletividade.

                                                 Esse investimento em políticas sociais  demanda  elevados custos, que  grande parte dos Estados contemporâneos  nem sempre está disposta  a  pagar, mas que,  por experiência daqueles  reconhecidamente  mais desenvolvidos, são apropriados para as nações chegarem a essa situação privilegiada no corpo planetário. Esses custos, por outro lado, ficam   cada vez mais altos, à medida que  a  idade biológica   de uma geração   avança, a par do seu  direito à liberdade  e à condução dos destinos sociais. E quando essa geração jovem de hoje atingir  a plena  responsabilidade civil  e penal , será justamente quando a nossa  e a dos políticos hoje determinando os destinos  dela, estará, finalmente , à mercê das suas escolhas.
 
                                                   É até  mesmo uma questão de economia de recursos públicos e de  defesa de sua soberania  e  status  perante as outras nações, num  mundo globalizado, como o nosso,   que o Estado deva hoje investir   pesado  em  educação  infantil e  juvenil. E essa educação não é só no sentido de destinação de conhecimentos, mas de uma transmissão  de normas  de comportamento adequado ao convívio social, de forma a permitir  a paz  e a harmonia no contexto   nacional e internacional.
 

 
 
Nota : Esta postagem é a cópia fiel de páginas 90 a 105 do livro "Delinquência Juvenil - Infraestrutura da Criminalidade Adulta", de autoria de Lia Pantoja Milhomens. Ed. In-Fólio. Rio de Janeiro, 2011. Cap. 3 - Evolução da legislação internacional de menores no Brasil, letra e) Crítica ao Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, ilustrações introduzidas pela autora para a publicação no Blog.