NOSSOS TEMPOS E OS FENÔMENOS
PSICOLÓGICOS (I)
(Texto completo de Carl Gustav Jung)
A priori,
não há motivo para admitir que os processos inconscientes tenham obrigatoriamente
um sujeito, nem tampouco para duvidarmos da realidade dos processos psíquicos. Entretanto,
como se admite, o problema torna-se difícil, quando lidamos com supostos atos
da vontade. Se não se trata de simples
"impulsos" ou "inclinações", mas de "escolha" e
de "decisão" aparentemente de ordem superior, próprias da vontade,
certamente não se pode deixar de admitir a existência necessária de um sujeito
que as controle e para o qual alguma coisa foi "representada". Por
definição, isto seria colocar uma consciência no inconsciente, seria uma
operação não muito difícil para o psicopatologista.
Com efeito, ele conhece um
fenômeno psíquico que a psicologia "acadêmica" quase sempre
desconhece: o fenômeno da dissociação ou dissociabilidade da personalidade.
Esta peculiaridade se deve ao fato de que a ligação dos processos psíquicos
entre si é uma ligação bastante condicionada. Não somente os processos inconscientes
dependem notavelmente das experiências da consciência, mas os próprios
processos conscientes revelam uma frouxidão muito clara ou
uma separação entre uns e outros. Limito-me apenas a recordar aqueles absurdos
ocasionados pelos complexos e que podemos observar com a máxima precisão desejada nas experiências de associação. Da mesma
forma que existem realmente os casos de double conscience [dupla consciência], cuja existência foi posta em dúvida por Wundt,
assim também os casos em que a personalidade não se acha inteiramente fundida,
mas apenas com alguns fragmentos menores destacados, são muito mais prováveis
ainda e, de fato, mais comuns. Trata-se inclusive de experiências antiquíssimas
da humanidade, que se refletem na suposição generalizada da existência lógica
de várias almas em um só e mesmo indivíduo. Como no-lo mostra a pluralidade de
componentes psíquicas no nível primitivo, o estado original se deve
ao fato de os processos psíquicos se acharem debilmente ligados entre si, e de maneira alguma a uma unidade perfeita
entre eles. Além do mais, basta um nada, como no-lo mostra a experiência
psiquiátrica, para despedaçar a unidade penosamente conseguida no curso do desenvolvimento, e reduzi-la de volta a seus
elementos originais.
O fato da dissociabilidade nos permite comodamente
superar as dificuldades ligadas à suposição
logicamente necessária de um limiar da consciência. Se é, em tudo e por tudo,
correto dizer que os conteúdos conscientes,
se tornam subliminares e, por isto mesmo, inconscientes, em decorrência
da perda de energia, e que, inversamente, os processos inconscientes se
tornam conscientes devido a um aumento de energia, então, para que os atos
inconscientes de vontade, por exemplo, sejam possíveis, é necessário que esses
processos possuam um potencial de energia capaz de os levar ao estado de consciência,
mas um estado de consciência secundária que consiste no fato de o processo
inconsciente ser "representado" para um sujeito subliminar que
escolhe e decide. Este deve necessariamente possuir inclusive uma
quantidade de energia exigida para conduzi-lo ao estado de consciência. Quer
dizer, ele deve alcançar, em um certo momento, seu bursting point [ponto de ruptura] (46). Mas, se
assim é, então surge a questão por que o processo inconsciente não cruza
realmente o limiar da consciência e não se torna
perceptível ao ego. Como, evidentemente, ele não o faz, mas aparentemente
permanece suspenso no domínio do sujeito subliminar secundário,
precisamos então de explicar por que este sujeito que, por hipótese, possui a quantidade de energia
necessária para conduzi-lo ao estado de consciência, não se alça, por sua
vez, acima do limiar e não se incorpora à consciência primária do ego. A Psicologia tem o material necessário
para responder a esta pergunta. Esta consciência secundária representa, com
efeito, uma componente da personalidade, que se separou da consciência do ego, por mero
acaso, mas deve sua separação a determinados motivos. Uma dissociação desta
espécie apresenta dois aspectos distintos: no primeiro caso,
trata-se de um conteúdo originariamente consciente que se tornou subliminar ao
ser reprimido por causa de sua
natureza incompatível; no segundo caso, o sujeito secundário consiste em
um processo que jamais pode penetrar na consciência, porque nesta não há a mínima possibilidade de
que se efetue a percepção deste
processo, isto é, a consciência do ego não pode recebê-lo, por falta de
compreensão e, por conseguinte,
permanece essencialmente subliminar, embora, do ponto de vista energético, ele
seja inteiramente capaz de tornar-se consciente.
Ele não deve sua existência à
repressão, mas é o resultado de processos subliminares e como tal nunca foi
consciente. Como em ambos os casos há um potencial de energia capaz de os conduzir ao estado de consciência, o
sujeito secundário atua sobre a consciência do ego, mas de maneira indireta,
isto é, através de "símbolos", embora esta expressão não me pareça
muito feliz. Quer dizer, os conteúdos que aparecem na consciência são
primeiramente sintomáticos. Na medida, porém, em que sabemos ou
acreditamos saber a que é que eles se referem ou em que se baseiam, eles são semióticos, embora a literatura freudiana
empregue o termo "simbólico" a despeito do fato de que, na realidade,
sempre exprimimos através de símbolos as coisas que não conhecemos. Os
conteúdos sintomáticos são, em parte, verdadeiramente simbólicos e são
representantes indiretos de estados ou processos inconscientes cuja natureza só
pode ser deduzida imperfeitamente e só pode tornar-se consciente a partir
dos conteúdos que aparecem na consciência. É possível, pois, que o inconsciente
abrigue conteúdos de tão alto nível de energia que, em outras circunstâncias,
eles tornar-se-iam perceptíveis ao ego. Na maioria das vezes, eles não são
conteúdos reprimidos, mas simplesmente conteúdos que ainda não se tornaram
conscientes, isto é, que ainda não foram percebidos subjetivamente, como,
por exemplo, os demônios ou os deuses dos primitivos ou os "ismos" em
que os homens modernos tão fanaticamente acreditam. Esse estado não é nem patológico nem de qualquer
modo estranho, mas o estado normal original, ao passo que a totalidade da
psique, compreendida na consciência, é uma meta ideal, e jamais
alcançada.
Não é sem justiça que colocamos a consciência, por
analogia, em ligação com as funções de sensação de cuja fisiologia deriva o
conceito de "limiar". O número das vibrações sonoras perceptíveis ao ouvido humano varia de 20 a 20.000 por segundo e o comprimento de ondas
da luz visível vai de 7.700até 3.900 angströms. Através desta analogia, podemos imaginar facilmente que há um limiar
inferior e um limiar superior para os processos psíquicos e que, consequentemente,
a consciência, que é o sistema perceptivo por excelência, pode ser
comparada com a escala perceptível do som e da luz, tendo, como estes,
um limite superior e um limite inferior. Acho que se poderia estender esta
comparação à psique em geral, o que seria
possível, se houvesse processos psicóides nas duas extremidades da escala
psíquica. De acordo com o princípio: natura non facit saltus [a natureza não dá saltos] esta hipótese não me
parece de todo fora de propósito.
"O psicóide é a soma de todas as funções
mnésicas do corpo e do sistema nervoso, orientadas para um fim e
destinadas à conservação da vida (com exceção daquelas funções corticais que
estamos sempre acostumados a considerar como psíquicas)." (50).
Em outra passagem ele escreve:
"A psique corporal do indivíduo e a
filosopsique juntas formam uma unidade que podemos muito bem empregar no
presente trabalho, designando-a pelo termo de psicóide. Comuns ao psicóide e à
psique... são a conação e o emprego de experiências anteriores... para alcançar
o alvo, o que inclui a memória (engrafia e ecforia) ea associação, ou seja,
algo de análogo ao pensamento". (51)
Embora seja claro o que o Autor entenda
por "psicóide", contudo, na prática, esse termo se confunde com
"psique", como nos mostra a passagem indicada. Por isto, não se
entende por que estas funções subcorticais a que se refere o termo em questão devam ser classificadas de
"semipsíquicas". A confusão provém evidentemente da concepção organológica
ainda observável em Bleuler, que opera com conceitos tais como "alma
cortical" e "alma medular",
mostrando, assim, uma tendência muito clara de derivar as funções psíquicas
correspondentes destas partes do cérebro, embora seja sempre a função
que crie seu próprio órgão, o conserve e o modifique.
A concepção organológica tem a desvantagem de
considerar todas as atividades da matéria ligadas a um fim como
"psíquicas", tendo como consequência o fato de que "vida" e
"psique" se equiparam, como no-lo mostra, por exemplo, o
emprego que Bleuler faz dos termos "filopsique" e"reflexos". É certamente muito difícil,
senão impossível, conceber uma função psíquica independentemente de seu próprio
órgão, embora, na realidade, experimentemos o processo psíquico sem sua relação
com o substrato orgânico. Mas para o psicólogo é justamente a totalidade destas
experiências que constitui o objeto de sua investigação, e, por esta razão,
deve abandonar uma terminologia tomada de empréstimo à anatomia. Se uso
o termo "psicóide" (52) , faço-o com três ressalvas: a primeira é que emprego esta palavra como adjetivo e não como
substantivo; a segunda é que ela não denota uma qualidade anímica ou psíquica
em sentido próprio, mas uma qualidade quase psíquica, como a dos processos reflexos;
e a terceira é que esse termo tem por função distinguir uma determinada
categoria de fatos dos meros fenômenos vitais, por uma parte, e dos
processos psíquicos em sentido próprio, por outra. Esta última distinção nos obriga também a definir com mais precisão a
natureza e a extensão do psíquico, e de modo todo particular do psíquico
inconsciente.
Se o
inconsciente pode conter tudo o que é conhecido como função da consciência,
então nos deparamos com a possibilidade de que ele possua, como a consciência,
inclusive um sujeito, uma espécie de ego. Esta conclusão acha-se expressa no
emprego frequente e persistente da palavra "subconsciente". Este
último termo, porém, é um tanto equívoco, porque, ou significa o que está
"por baixo da consciência", ou postula uma consciência
"inferior", isto é, secundária. Ao mesmo tempo, a hipótese de um
"subconsciente" ao qual imediatamente vem se associar um
"superconsciente" (53) aponta-nos para aquilo que constitui
o núcleo real de meu argumento, ou seja, o fato de que um segundo sistema psíquico
concomitante à consciência — independentemente das qualidades que venhamos a
lhe atribuir — é de uma significação absolutamente revolucionária,
na medida em que poderá alterar radicalmente nossa visão do mundo. Se as
percepções que têm lugar neste segundo sistema psíquico pudessem
ser transferidas para a consciência do ego, teríamos a possibilidade de
ampliar enormemente nossa visão do mundo.
Se tomarmos a sério a hipótese da existência do
inconsciente, logo nos daremos conta deque nossa
visão do mundo não pode ser senão provisória, pois, se introduzirmos uma
alteração tão radical no sujeito da percepção e da cognição, como a que ocorre
numa reduplicação de componentes díspares como
esta, o resultado será uma visão do mundo diferente daquela habitual. Isto,
porém, só é possível, se a hipótese do inconsciente for procedente, o que, por
sua vez, só pode acontecer, se os conteúdos inconscientes puderem ser mudados
em conteúdos conscientes, ou, em outras palavras, se as perturbações exercidas
pelo inconsciente, isto é, os efeitos das manifestações espontâneas, dos
sonhos, das fantasias e dos complexos, se integrarem na consciência pelo
processo interpretativo.”
____________________
46
James,
Varieties,
47
Philosophie des Organischen, p.
357.
48
Op. Cit., p.
487.
49
Die Psychoide,
p. 11. Um feminino singular, evidentemente derivado
do termo psique (δηζ = semelhante à alma).
50
Op. Cit., p.
11.
51
Op. Cit., p.
33.
52
Posso utilizar-me tanto mais legitimamente do
vocábulo "psicóide", porque, embora o uso que faço desse termo derive
de um campo diferente de observações, contudo, ele procura exprimir mais ou
menos aproximadamente aquele grupo de fenômenos que Bleuler tinha também em
vista. Busemann chama de "micropsiquismo" a este psiquismo não
diferenciado ( Die Einheit der Psychologie und das Problemdes
Mikropsychischen p. 31).
53
Este "supraconsciente" é contestado
notadamente por pessoas que se acham sob a influência da Filosofia hindu. Em
geral elas não percebem que suas objeções só se aplicam à hipótese de um
"subconsciente", termo ambíguo que eu evito empregar. O meu conceito
de inconsciente, pelo contrário, deixa totalmente em aberto a questão de um
"supra" e de um "sub" e abarca os dois aspectos do
psiquismo.
Este texto do livro "A Natureza da Psique", de C.G. Jung foi compilado integralmente da Internet, download free : http://pt.scribd.com/doc/19474519/CGjung-A-Natureza-Da-Psique
Figuras e desenhos incluídos por nós, compilados na Internet.
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