quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Nossos Tempos e os Fenômenos Psicológicos (I)


NOSSOS TEMPOS E OS FENÔMENOS PSICOLÓGICOS  (I)

                                                      
 
 
“A DISSOCIABILIDADE DA PSIQUE

(Texto  completo de Carl Gustav Jung)

 
                                          A priori, não há motivo para admitir que os processos inconscientes tenham obrigatoriamente um sujeito, nem tampouco para duvidarmos da realidade dos processos psíquicos. Entretanto, como se admite, o problema torna-se difícil, quando lidamos com supostos atos da vontade.  Se não se trata de simples "impulsos" ou "inclinações", mas de "escolha" e de "decisão" aparentemente de ordem superior, próprias da vontade, certamente não se pode deixar de admitir a existência necessária de um sujeito que as controle e para o qual alguma coisa foi "representada". Por definição, isto seria colocar uma consciência no inconsciente, seria uma operação não muito difícil para o psicopatologista.
 
 
 
 
Com efeito, ele conhece um fenômeno psíquico que a psicologia "acadêmica" quase sempre desconhece: o fenômeno da dissociação ou dissociabilidade da personalidade. Esta peculiaridade se deve ao fato de que a ligação dos processos psíquicos entre si é uma ligação bastante condicionada. Não somente os processos inconscientes dependem notavelmente das experiências da consciência, mas os próprios processos conscientes revelam uma frouxidão muito clara ou uma separação entre uns e outros. Limito-me apenas a recordar aqueles absurdos ocasionados pelos complexos e que podemos observar com a máxima precisão desejada nas experiências de associação. Da mesma forma que existem realmente os casos de double conscience  [dupla consciência], cuja existência foi posta em dúvida por Wundt, assim também os casos em que a personalidade não se acha inteiramente fundida, mas apenas com alguns fragmentos menores destacados, são muito mais prováveis ainda e, de fato, mais comuns. Trata-se inclusive de experiências antiquíssimas da humanidade, que se refletem na suposição generalizada da existência lógica de várias almas em um só e mesmo indivíduo. Como no-lo mostra a pluralidade de componentes psíquicas no nível primitivo, o estado original se deve ao fato de os processos psíquicos se acharem debilmente ligados entre si, e de maneira alguma a uma unidade perfeita entre eles. Além do mais, basta um nada, como no-lo mostra a experiência psiquiátrica, para despedaçar a unidade penosamente conseguida no curso do desenvolvimento, e reduzi-la de volta a seus elementos originais.


  
                                            O fato da dissociabilidade nos permite comodamente superar as dificuldades ligadas à suposição logicamente necessária de um limiar da consciência. Se é, em tudo e por tudo, correto dizer que os conteúdos conscientes, se tornam subliminares e, por isto mesmo, inconscientes, em decorrência da perda de energia, e que, inversamente, os processos inconscientes se tornam conscientes devido a um aumento de energia, então, para que os atos inconscientes de vontade, por exemplo, sejam possíveis, é necessário que esses processos possuam um potencial de energia capaz de os levar ao estado de consciência, mas um estado de consciência secundária que consiste no fato de o processo inconsciente ser "representado" para um sujeito subliminar que escolhe e decide. Este deve necessariamente possuir inclusive uma quantidade de energia exigida para conduzi-lo ao estado de consciência. Quer dizer, ele deve alcançar, em um certo momento, seu bursting point [ponto de ruptura] (46).  Mas, se assim é, então surge a questão por que o processo inconsciente não cruza realmente o limiar da consciência e não se torna perceptível ao ego. Como, evidentemente, ele não o faz, mas aparentemente permanece suspenso no domínio do sujeito subliminar secundário, precisamos então de explicar por que este sujeito que, por hipótese, possui a quantidade de energia necessária para conduzi-lo ao estado de consciência, não se alça, por sua vez, acima do limiar e não se incorpora à consciência primária do ego.  A Psicologia tem o material necessário para responder a esta pergunta. Esta consciência secundária representa, com efeito, uma componente da personalidade,  que se separou da consciência do ego, por mero acaso, mas deve sua separação a determinados motivos. Uma dissociação desta espécie apresenta dois aspectos distintos: no primeiro caso, trata-se de um conteúdo originariamente consciente que se tornou subliminar ao ser reprimido por causa de sua natureza incompatível; no segundo caso, o sujeito secundário consiste em um processo que jamais pode penetrar na consciência,  porque nesta não há a mínima possibilidade de que se efetue a  percepção deste processo, isto é, a consciência do ego não pode recebê-lo, por falta de compreensão  e, por conseguinte, permanece essencialmente subliminar, embora, do ponto de vista energético, ele seja inteiramente capaz de tornar-se consciente.
 
                                                                 
 
 Ele não deve sua existência à repressão, mas é o resultado de processos subliminares e como tal nunca foi consciente. Como em ambos os casos há um potencial de energia capaz  de os conduzir ao estado de consciência, o sujeito secundário atua sobre a consciência do ego, mas de maneira indireta, isto é, através de "símbolos", embora esta expressão não me pareça muito feliz. Quer dizer, os conteúdos que aparecem na consciência são primeiramente sintomáticos. Na medida, porém, em que sabemos ou acreditamos saber a que é que eles se referem ou em que se baseiam, eles são semióticos, embora a literatura freudiana empregue o termo "simbólico" a despeito do fato de que, na realidade, sempre exprimimos através de símbolos as coisas que não conhecemos. Os conteúdos sintomáticos são, em parte, verdadeiramente simbólicos e são representantes indiretos de estados ou processos inconscientes cuja natureza só pode ser deduzida imperfeitamente e só pode tornar-se consciente a partir dos conteúdos que aparecem na consciência. É possível, pois, que o inconsciente abrigue conteúdos de tão alto nível de energia que, em outras circunstâncias, eles tornar-se-iam perceptíveis ao ego. Na maioria das vezes, eles não são conteúdos reprimidos, mas simplesmente conteúdos que ainda não se tornaram conscientes, isto é, que ainda não foram percebidos subjetivamente, como, por exemplo, os demônios ou os deuses dos primitivos ou os "ismos" em que os homens modernos tão  fanaticamente  acreditam. Esse  estado não é nem patológico nem de qualquer modo estranho, mas o estado normal original, ao passo que a totalidade da psique, compreendida na consciência, é uma meta ideal, e jamais alcançada.
 
 
                                          Não é sem justiça que colocamos a consciência, por analogia, em ligação com as funções de sensação de cuja fisiologia deriva o conceito de "limiar". O número das vibrações sonoras perceptíveis ao ouvido humano varia de 20 a 20.000 por segundo e o comprimento de ondas da luz visível vai de 7.700até 3.900 angströms. Através desta analogia, podemos imaginar facilmente que há um limiar inferior e um limiar superior para os processos psíquicos e que, consequentemente, a consciência, que é o sistema perceptivo por excelência, pode ser comparada com a escala perceptível do som e da luz, tendo, como estes, um limite superior e um limite inferior. Acho que se poderia estender esta comparação à psique em geral, o que seria possível, se houvesse processos psicóides nas duas extremidades da escala psíquica. De acordo com o princípio: natura non facit saltus [a natureza não dá saltos] esta hipótese não me parece de todo fora de propósito.
 
 
 

                                  Ao usar o termo "psicóide", estou plenamente cônscio de que ele entra em choque com a mesma palavra criada por Driesch. Por psicóide entende ele o princípio condutor, o "determinante das reações", a "potência prospectiva" do elemento germinal. É "o agente elementar descoberto na ação" (47) , a"enteléquia da ação real" (48) . Como bem ressaltou Eugen Bleuler, o conceito de Driesch é mais filosófico do que científico. Bleuler, ao invés, usa a expressão "psicóide" (48) como termo coletivo, para designar, sobretudo, processos subcorticais que se acham relacionados biologicamente com "funções de adaptação". Entre estas, Bleuler enumera o "reflexo e o desenvolvimento da espécie". Ele define-a como segue:
 
 "O psicóide é a soma de todas as funções mnésicas do corpo e do sistema nervoso, orientadas para um fim e destinadas à conservação da vida (com exceção daquelas funções corticais que estamos sempre acostumados a considerar como psíquicas)." (50).

 
Em outra passagem ele escreve: 

"A psique corporal do indivíduo e a filosopsique juntas formam uma unidade que podemos muito bem empregar no presente trabalho, designando-a pelo termo de psicóide. Comuns ao psicóide e à psique... são a conação e o emprego de experiências anteriores... para alcançar o alvo, o que inclui a memória (engrafia e ecforia) ea associação, ou seja, algo de análogo ao pensamento". (51)

Embora seja claro o que o Autor entenda por "psicóide", contudo, na prática, esse termo se confunde com "psique", como nos mostra a passagem indicada. Por isto, não se entende por que estas funções subcorticais a que se refere o termo em questão devam ser classificadas de "semipsíquicas". A confusão provém evidentemente da concepção organológica ainda observável em Bleuler, que opera com conceitos tais como "alma cortical" e "alma medular", mostrando, assim, uma tendência muito clara de derivar as funções psíquicas correspondentes destas partes do cérebro, embora seja sempre a função que crie seu próprio órgão, o conserve e o modifique.  A  concepção organológica tem a desvantagem de considerar todas as atividades da matéria  ligadas a um fim como "psíquicas", tendo como consequência o fato de que "vida" e "psique" se equiparam, como no-lo mostra, por exemplo, o emprego que Bleuler faz dos termos "filopsique" e"reflexos". É certamente muito difícil, senão impossível, conceber uma função psíquica independentemente de seu próprio órgão, embora, na realidade, experimentemos o processo psíquico sem sua relação com o substrato orgânico. Mas para o psicólogo é justamente a totalidade destas experiências que constitui o objeto de sua investigação, e, por esta razão, deve abandonar uma terminologia tomada de empréstimo à anatomia. Se uso o termo "psicóide" (52) , faço-o com três ressalvas: a primeira é que emprego esta palavra como adjetivo e não como substantivo; a segunda é que ela não denota uma qualidade anímica ou psíquica em sentido próprio, mas uma qualidade quase psíquica, como a dos processos reflexos; e a terceira é que esse termo tem por função distinguir uma determinada categoria de fatos dos meros fenômenos vitais, por uma parte, e dos processos psíquicos em sentido próprio, por outra. Esta última distinção nos obriga também a definir com mais precisão a natureza e a extensão do psíquico, e de modo todo particular do psíquico inconsciente.

 


                                            Se o inconsciente pode conter tudo o que é conhecido como função da consciência, então nos deparamos com a possibilidade de que ele possua, como a consciência, inclusive um sujeito, uma espécie de ego. Esta conclusão acha-se expressa no emprego frequente e persistente da palavra "subconsciente". Este último termo, porém, é um tanto equívoco, porque, ou significa o que está "por  baixo da consciência", ou postula uma consciência "inferior", isto é, secundária. Ao mesmo tempo, a hipótese de um "subconsciente" ao qual imediatamente vem se associar um "superconsciente" (53) aponta-nos para aquilo que constitui o núcleo real de meu argumento, ou seja, o fato de que um segundo sistema psíquico concomitante à consciência — independentemente das qualidades que venhamos a lhe atribuir  — é de uma significação absolutamente revolucionária, na medida em que poderá alterar radicalmente nossa visão do mundo. Se as percepções que têm lugar neste segundo sistema psíquico pudessem ser transferidas para a consciência do ego, teríamos a possibilidade de ampliar enormemente nossa visão do mundo.

 


                                              Se tomarmos a sério a hipótese da existência do inconsciente, logo nos daremos conta deque nossa visão do mundo não pode ser senão provisória, pois, se introduzirmos uma alteração tão radical no sujeito da percepção e da cognição, como a que ocorre numa reduplicação de componentes díspares como esta, o resultado será uma visão do mundo diferente daquela habitual. Isto, porém, só é possível, se a hipótese do inconsciente for procedente, o que, por sua vez, só pode acontecer, se os conteúdos inconscientes puderem ser mudados em conteúdos conscientes, ou, em outras palavras, se as perturbações exercidas pelo inconsciente, isto é, os efeitos das manifestações espontâneas, dos sonhos, das fantasias e dos complexos, se integrarem na consciência pelo processo interpretativo.”


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46
James, Varieties,
47
 Philosophie des Organischen,  p. 357.
48
Op. Cit., p. 487.
49
Die Psychoide,
p. 11. Um feminino singular, evidentemente derivado do termo psique (δηζ = semelhante à alma).
50
Op. Cit., p. 11.
51
Op. Cit., p. 33.
52
Posso utilizar-me tanto mais legitimamente do vocábulo "psicóide", porque, embora o uso que faço desse termo derive de um campo diferente de observações, contudo, ele procura exprimir mais ou menos aproximadamente aquele grupo de fenômenos que Bleuler tinha também em vista. Busemann chama de "micropsiquismo" a este psiquismo não diferenciado ( Die Einheit der Psychologie und das Problemdes Mikropsychischen  p. 31).
53
Este "supraconsciente" é contestado notadamente por pessoas que se acham sob a influência da Filosofia hindu. Em geral elas não percebem que suas objeções só se aplicam à hipótese de um "subconsciente", termo ambíguo que eu evito empregar. O meu conceito de inconsciente, pelo contrário, deixa totalmente em aberto a questão de um "supra" e de um "sub" e abarca os dois aspectos do psiquismo.
  Este texto do livro  "A Natureza da Psique", de C.G. Jung foi compilado integralmente da Internet, download free : http://pt.scribd.com/doc/19474519/CGjung-A-Natureza-Da-Psique     
 
Figuras e desenhos incluídos por nós, compilados na Internet.

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