RUI BARBOSA : ORAÇÃO AOS MOÇOS
1. Sobre a Lei
Uma vez, que
Alcibíades discutia com Péricles, em palestra registrada por Xenofonte, acertou
de se debater o que seja lei, e quando exista, ou não exista.
— Que vem a
ser lei? Indaga Alcibíades.
— A
expressão da vontade do povo, responde Péricles.
— Mas que é
o que determina esse povo? O bem, ou o mal? Replica-lhe o sobrinho.
— Certo que
o bem, mancebo.
— Mas, sendo
uma oligarquia quem mande, isto é, um diminuto número de homens, serão, ainda assim,
respeitáveis as leis?
— Sem
dúvida.
— Mas, se a
disposição vier de um tirano? Se ocorrer violência, ou ilegalidade? Se o
poderoso coagir o fraco? Cumprirá, todavia, obedecer?
Péricles
hesita; mas acaba admitindo:
— Creio que
sim.
— Mas então,
insiste Alcibíades, o tirano, que constrange os cidadãos a lhe acatarem os
caprichos, não será, esse sim, o inimigo das leis?
— Sim; vejo
agora que errei em chamar leis às ordens de um tirano, costumado a mandar, sem
persuadir.
— Mas,
quando um diminuto número de cidadãos impõe seus arbítrios à multidão, daremos,
ou não, a isso o nome de violência?
— Parece-me
a mim, concede Péricles, cada vez mais vacilante, que, em caso tal, é de
violência que se trata, não de lei.
Admitido
isso, já Alcibíades triunfa:
— Logo, quando
a multidão, governando, obrigar os ricos, sem consenso destes, não será,
também, violência, e não lei?
Péricles não
acha que responder; e a própria razão não o acharia. Não é lei a lei, senão
quando assenta no consentimento da maioria, já que, exigido o de todos, desiderandum
irrealizável, não haveria meio jamais de se chegar a uma lei.
Ora,
senhores bacharelandos, pesai bem que vos ides consagrar à lei, num país onde a
lei absolutamente não exprime o consentimento da maioria, onde são as minorias,
as oligarquias mais acanhadas, mais impopulares e menos respeitáveis, as que
põem, e dispõem, as que mandam, e desmandam em tudo; a saber: num país, onde,
verdadeiramente, não há lei, não há moral, política ou juridicamente falando.
Considerai,
pois, nas dificuldades, em que se vão enlear os que professam a missão de
sustentáculos e auxiliares da lei, seus mestres e executores.
É verdade
que a execução corrige, ou atenua, muitas vezes, a legislação de má nota. Mas,
no Brasil, a lei se deslegitima, anula e torna inexistente, não só pela
bastardia da origem, senão ainda pelos horrores da aplicação.
Ora, dizia
S. Paulo que boa é a lei, onde se executa legitimamente. Bona est lex, si
quis ea legitime utatur. Quereria dizer: Boa é a lei quando executada com
retidão. Isto é: boa será em havendo no executor a virtude, que no legislador
não havia. Porque só a moderação, a inteireza e a equidade, no aplicar das más
leis, as poderiam, em certa medida, escoimar da impureza, dureza e maldade, que
encerrarem. Ou, mais lisa e claramente, se bem o entendo, pretenderia
significar o apóstolo das gentes que mais vale a lei má, quando inexecutada, ou
mal executada (para o bem), que a boa lei sofismada e não observada (contra
ele).
2. Sobre as Leis e a Justiça
Que
extraordinário, que imensurável, que, por assim dizer, estupendo e
sobre-humano, logo, não será, em tais condições, o papel da justiça! Maior que
o da própria legislação. Porque, se dignos são os juízes, como parte suprema,
que constituem, no executar das leis, em sendo justas, lhes manterão eles a sua
justiça, e, injustas, lhes poderão moderar, se não, até, no seu tanto, corrigir
a injustiça.
De nada
aproveitam leis, bem se sabe, não existindo quem as ampare contra os abusos; e
o amparo sobre todos essencial é o de uma justiça tão alta no seu poder, quanto
na sua missão. “Aí temos as leis”, dizia o Florentino. “Mas quem lhes há de ter
mão? Ninguém”.
“Le leggi son, ma chi pon mano
ad esse? Nullo”.
Entre nós
não seria lícito responder assim tão em absoluto à interrogação do poeta. Na
constituição brasileira, a mão que ele não via na sua república e em sua época,
a mão sustentadora das leis, aí a temos, hoje, criada, e tão grande, que nada
lhe iguala a majestade, nada lhe rivaliza o poder. Entre as leis, é a justiça
quem decide, fulminando aquelas, quando com esta colidirem.
Soberania tamanha só nas federações de molde norte-americano cabe ao poder judiciário, subordinado aos outros poderes nas demais formas de governo, mas, nesta, superior a todos.
Soberania tamanha só nas federações de molde norte-americano cabe ao poder judiciário, subordinado aos outros poderes nas demais formas de governo, mas, nesta, superior a todos.
Dessas democracias, pois, o eixo é a justiça, eixo não abstrato, não supositício, não meramente moral, mas de uma realidade profunda, e tão seriamente implantado no mecanismo do regímen, tão praticamente embebido através de todas as suas peças, que, falseando ele ao seu mister, todo o sistema cairá em paralisia, desordem e subversão. Os poderes constitucionais entrarão em conflitos insolúveis, as franquias constitucionais ruirão por terra, e da organização constitucional, do seu caráter, das suas funções, de suas garantias apenas restarão destroços.
Eis o de que
nos há de preservar a justiça brasileira, se a deixarem sobreviver, ainda que
agredida, oscilante e mal segura, aos outros elementos constitutivos da
república, no meio das ruínas, em que mal se conservam ligeiros traços da sua
verdade.
Ora, senhores,
esse poder eminencialmente necessário, vital e salvador, tem os dois braços,
nos quais aguenta a lei, em duas instituições: a magistratura e a advocacia,
tão velhas como a sociedade humana, mas elevadas ao cem-dobro, na vida
constitucional do Brasil, pela estupenda importância, que o novo regímen veio
dar à justiça.
Meus amigos,
é para colaborardes em dar existência a essas duas instituições que hoje saís
daqui habilitados. Magistrados ou advogados sereis. São duas carreiras quase
sagradas, inseparáveis uma da outra, e, tanto uma como a outra, imensas nas
dificuldades, responsabilidades e utilidades.
Se cada um
de vós meter bem a mão na consciência, certo que tremerá da perspectiva. O
tremer próprio é dos que se defrontam com as grandes vocações, e são talhados
para as desempenhar. O tremer, mas não o descorçoar. O tremer, mas não o
renunciar. O tremer, com o ousar. O tremer, com o empreender. O tremer, com o
confiar. Confiai, senhores. Ousai. Reagi. E haveis de ser bem sucedidos. Deus,
pátria, e trabalho. Metei no regaço essas três fés, esses três amores, esses
três signos santos. E segui, com o coração puro. Não hajais medo a que a sorte
vos ludibrie. Mais pode que os seus azares a constância, a coragem e a virtude.
Idealismo?
Não: experiência da vida. Não há forças, que mais a senhoreiem, do que essas.
Experimentai-o, como eu o tenho experimentado. Poderá ser que resigneis certas
situações, como eu as tenho resignado. Mas meramente para variar de posto, e,
em vos sentindo incapazes de uns, buscar outros, onde vos venha ao encontro o
dever, que a Providência vos havia reservado.
Encarai,
jovens colegas meus, nessas duas estradas, que se vos patenteiam. Tomai a que
vos indicarem vossos pressentimentos, gostos e explorações, no campo dessas
nobres disciplinas, com que lida a ciência das leis e a distribuição da
justiça. Abraçai a que vos sentirdes indicada pelo conhecimento de vós mesmos.
Mas não primeiro que hajais buscado na experiência de outrem um pouco da que
vos é mister, e que ainda não tendes, para eleger a melhor derrota, entre as
duas que se oferecem à carta de idoneidade, hoje obtida.
Pelo que me
toca, escassamente avalio até onde, nisso, vos poderia eu ser útil. Muito vi em
cinquenta anos. Mas o que constitui a experiência, consiste menos no ver, que
no saber observar. Observar com clareza, com desinteresse, com seleção.
Observar, deduzindo, induzindo, e generalizando, com pausa, com critério com
desconfiança. Observar, apurando, contrasteando, e guardando.
3. Sobre o Juiz
É à magistratura que vos ides votar?
Elegeis, então, a mais eminente das profissões, a que um homem se pode
entregar neste mundo. Essa elevação me impressiona seriamente; de modo que não
sei se a comoção me não atalhará o juízo, ou tolherá o discurso. Mas não se
dirá que, em boa vontade, fiquei aquém dos meus deveres.
Serão, talvez, meras vulgaridades, tão singelas, quão sabidas, mas ande
o senso comum, a moral e o direito, associando-se à experiência, lhe nobilitam
os ditames. Vulgaridades, que qualquer outro orador se avantajaria em esmaltar
de melhor linguagem, mas que, na ocasião, a mim tocam, e no meu ensoado
vernáculo hão de ser ditas. Baste, porém, que se digam com isenção, com
firmeza, com lealdade; e assim hão de ser ditas, hoje, desta nobre tribuna.
Moços, se vos ides medir com o direito e o crime na cadeira de juízes,
começai, esquadrinhando as exigências aparentemente menos altas dos vossos
cargos, e proponde-vos caprichar nelas com dobrado rigor; porque, para sermos
fiéis no muito, o devemos ser no pouco.
“Qui fidelis est in minimo, et in majori fidel est; et qui in modico
iniquus est, et in majori iniquus est”.
Ponho exemplo, senhores. Nada se leva em menos conta, na judicatura, a
uma boa fé de ofício que o vezo de tardança nos despachos e sentenças. Os
códigos se cansam debalde em o punir. Mas a geral habitualidade e a conivência
geral o entretêm, inocentam e universalizam. Destarte se incrementa e demanda
ele em proporções incalculáveis, chegando as causas a contar a idade por
lustras, ou décadas, em vez de anos.
Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e
manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito
escrito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade. Os juízes
tardinheiros são culpados, que a lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa
tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir
contra o delinquente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente.
Não sejais, pois, desses magistrados, nas mãos de quem os autos penam
como as almas do purgatório, ou arrastam sonos esquecidos como as preguiças do
mato.
Não vos pareçais com esses outros juízes, que, com tabuleta de
escrupulosos, imaginam em risco a sua boa fama, se não evitarem o contato dos
pleiteantes, recebendo-os com má sombra, em lugar de os ouvir a todos com
desprevenção, doçura e serenidade.
Não imiteis os que, em se lhes oferecendo o mais leve pretexto, a si
mesmos põem suspeições rebuscadas, para esquivar responsabilidades, que seria
do seu dever arrostar sem quebra de ânimo ou de confiança no prestígio dos seus
cargos.
Não sigais os que argumentam com o grave das acusações, para se armarem
de suspeita e execração contra os acusados; como se, pelo contrário, quanto
mais odiosa a acusação, não houvesse o juiz de se precaver mais contra os
acusadores, e menos perder de vista a presunção de inocência, comum a todos os
réus enquanto não liquidada a prova e reconhecido o delito.
Não acompanheis os que, no pretório, ou no júri, se convertem de
julgadores em verdugos, torturando o réu com severidades inoportunas,
descabidas, ou indecentes; como se todos os acusados não tivessem direito à
proteção dos seus juízes, e a lei processual, em todo o mundo civilizado, não
houvesse por sagrado o homem, sobre quem recai acusação ainda inverificada.
Não estejais com os que agravam o rigor das leis, para se acreditar com
o nome de austeros e ilibados. Porque não há nada menos nobre e aplausível que
agenciar uma reputação malignamente obtida em prejuízo da verdadeira
inteligência dos textos legais.
Não julgueis por considerações de pessoas, ou pelas do valor das
quantias litigadas, negando as somas, que se pleiteiam, em razão da sua
grandeza, ou escolhendo, entre as partes na lide, segundo a situação social
delas, seu poderio, opulência e conspicuidade. Porque quanto mais armados estão
de tais armas os poderosos, mais inclinados é de recear que sejam à extorsão
contra os menos ajudados da fortuna; e, por outro lado, quanto maiores são os
valores demandados e maior, portanto, a lesão arguida, mais grave iniquidade
será negar a reparação, que se demanda.
Não vos mistureis com os togados, que contraíram a doença de achar
sempre razão ao Estado, ao Governo, à Fazenda; por onde os condecora o povo com
o título de “fazendeiros”. Essa presunção de terem, de ordinário, razão contra
o resto do mundo, nenhuma lei a reconhece à Fazenda, ao Governo, ou ao Estado.
Antes, se admissível fosse aí qualquer presunção, havia de ser em
sentido contrário; pois essas entidades são as mais irresponsáveis, as que mais
abundam em meios de corromper, as que exercem as perseguições, administrativas,
políticas e policiais, as que, demitindo funcionários indemissíveìs, rasgando
contratos solenes, consumando lesões de toda a ordem (por não serem os
perpetradores de tais atentados os que os pagam), acumulam, continuamente,
sobre o tesoiro público terríveis responsabilidades.
________
NOTA : Excerto do livro de Rui Barbosa, "Oração aos Moços" , com inclusão de subtítulos e gravuras nossos, com o fim de sistematizar os temas.
Trata-se de uma carta que tem como tema a ética profissional.
BARBOSA, Rui. Oração aos Moços . São Paulo (SP): Martin Claret Ed., 2004
"Em 1920, Rui Barbosa fora convidado a paraninfar a turma de Direito da Faculdade do Largo de São Francisco, mas fora impedido de comparecer devido sérios problemas de saúde. O célebre advogado, jornalista e político envia, então, a turma um discurso que redigiu em março de 1.921. No texto, o autor faz um balanço de sua vida, uma síntese de sua maturidade intelectual e discorre sobre o papel do magistrado e a missão do advogado, para que sirva de exemplo para todos que pretendem seguir tal ofício. O discurso é, então, lido pelo professor Reinaldo Porchat na colação de grau da turma.
No ápice de sua vida profissional, ao completar cinquenta anos de carreira jurídica, a intenção de Rui Barbosa nessa obra é transmitir suas experiências positivas e negativas, ideias, reflexões e conselhos àqueles que estavam iniciando a prática jurídica."
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