segunda-feira, 16 de setembro de 2013

RUI BARBOSA - ORAÇÃO AOS MOÇOS

RUI BARBOSA : ORAÇÃO AOS MOÇOS

                                                     
 
 
 
1. Sobre a Lei

Uma vez, que Alcibíades discutia com Péricles, em palestra registrada por Xenofonte, acertou de se debater o que seja lei, e quando exista, ou não exista.
 
— Que vem a ser lei? Indaga Alcibíades.
 
— A expressão da vontade do povo, responde Péricles. 

— Mas que é o que determina esse povo? O bem, ou o mal? Replica-lhe o sobrinho. 

— Certo que o bem, mancebo. 

— Mas, sendo uma oligarquia quem mande, isto é, um diminuto número de homens, serão, ainda assim, respeitáveis as leis? 

— Sem dúvida. 

— Mas, se a disposição vier de um tirano? Se ocorrer violência, ou ilegalidade? Se o poderoso coagir o fraco? Cumprirá, todavia, obedecer? 

Péricles hesita; mas acaba admitindo:

— Creio que sim. 

— Mas então, insiste Alcibíades, o tirano, que constrange os cidadãos a lhe acatarem os caprichos, não será, esse sim, o inimigo das leis? 

— Sim; vejo agora que errei em chamar leis às ordens de um tirano, costumado a mandar, sem persuadir. 

— Mas, quando um diminuto número de cidadãos impõe seus arbítrios à multidão, daremos, ou não, a isso o nome de violência? 

— Parece-me a mim, concede Péricles, cada vez mais vacilante, que, em caso tal, é de violência que se trata, não de lei. 

Admitido isso, já Alcibíades triunfa:

— Logo, quando a multidão, governando, obrigar os ricos, sem consenso destes, não será, também, violência, e não lei? 

Péricles não acha que responder; e a própria razão não o acharia. Não é lei a lei, senão quando assenta no consentimento da maioria, já que, exigido o de todos, desiderandum irrealizável, não haveria meio jamais de se chegar a uma lei.

Ora, senhores bacharelandos, pesai bem que vos ides consagrar à lei, num país onde a lei absolutamente não exprime o consentimento da maioria, onde são as minorias, as oligarquias mais acanhadas, mais impopulares e menos respeitáveis, as que põem, e dispõem, as que mandam, e desmandam em tudo; a saber: num país, onde, verdadeiramente, não há lei, não há moral, política ou juridicamente falando. 

Considerai, pois, nas dificuldades, em que se vão enlear os que professam a missão de sustentáculos e auxiliares da lei, seus mestres e executores. 

É verdade que a execução corrige, ou atenua, muitas vezes, a legislação de má nota. Mas, no Brasil, a lei se deslegitima, anula e torna inexistente, não só pela bastardia da origem, senão ainda pelos horrores da aplicação. 

Ora, dizia S. Paulo que boa é a lei, onde se executa legitimamente. Bona est lex, si quis ea legitime utatur. Quereria dizer: Boa é a lei quando executada com retidão. Isto é: boa será em havendo no executor a virtude, que no legislador não havia. Porque só a moderação, a inteireza e a equidade, no aplicar das más leis, as poderiam, em certa medida, escoimar da impureza, dureza e maldade, que encerrarem. Ou, mais lisa e claramente, se bem o entendo, pretenderia significar o apóstolo das gentes que mais vale a lei má, quando inexecutada, ou mal executada (para o bem), que a boa lei sofismada e não observada (contra ele).
                                      
 
 
 


2. Sobre as Leis e a Justiça

Que extraordinário, que imensurável, que, por assim dizer, estupendo e sobre-humano, logo, não será, em tais condições, o papel da justiça! Maior que o da própria legislação. Porque, se dignos são os juízes, como parte suprema, que constituem, no executar das leis, em sendo justas, lhes manterão eles a sua justiça, e, injustas, lhes poderão moderar, se não, até, no seu tanto, corrigir a injustiça. 

De nada aproveitam leis, bem se sabe, não existindo quem as ampare contra os abusos; e o amparo sobre todos essencial é o de uma justiça tão alta no seu poder, quanto na sua missão. “Aí temos as leis”, dizia o Florentino. “Mas quem lhes há de ter mão? Ninguém”.
 
Le leggi son, ma chi pon mano ad esse? Nullo”.
 
Entre nós não seria lícito responder assim tão em absoluto à interrogação do poeta. Na constituição brasileira, a mão que ele não via na sua república e em sua época, a mão sustentadora das leis, aí a temos, hoje, criada, e tão grande, que nada lhe iguala a majestade, nada lhe rivaliza o poder. Entre as leis, é a justiça quem decide, fulminando aquelas, quando com esta colidirem. 



             Soberania tamanha só nas federações de molde norte-americano cabe ao poder judiciário, subordinado aos outros poderes nas demais formas de governo, mas, nesta, superior a todos. 
 

Dessas democracias, pois, o eixo é a justiça, eixo não abstrato, não supositício, não meramente moral, mas de uma realidade profunda, e tão seriamente implantado no mecanismo do regímen, tão praticamente embebido através de todas as suas peças, que, falseando ele ao seu mister, todo o sistema cairá em paralisia, desordem e subversão. Os poderes constitucionais entrarão em conflitos insolúveis, as franquias constitucionais ruirão por terra, e da organização constitucional, do seu caráter, das suas funções, de suas garantias apenas restarão destroços.                   
 
 
Eis o de que nos há de preservar a justiça brasileira, se a deixarem sobreviver, ainda que agredida, oscilante e mal segura, aos outros elementos constitutivos da república, no meio das ruínas, em que mal se conservam ligeiros traços da sua verdade.
 
Ora, senhores, esse poder eminencialmente necessário, vital e salvador, tem os dois braços, nos quais aguenta a lei, em duas instituições: a magistratura e a advocacia, tão velhas como a sociedade humana, mas elevadas ao cem-dobro, na vida constitucional do Brasil, pela estupenda importância, que o novo regímen veio dar à justiça. 

Meus amigos, é para colaborardes em dar existência a essas duas instituições que hoje saís daqui habilitados. Magistrados ou advogados sereis. São duas carreiras quase sagradas, inseparáveis uma da outra, e, tanto uma como a outra, imensas nas dificuldades, responsabilidades e utilidades.

Se cada um de vós meter bem a mão na consciência, certo que tremerá da perspectiva. O tremer próprio é dos que se defrontam com as grandes vocações, e são talhados para as desempenhar. O tremer, mas não o descorçoar. O tremer, mas não o renunciar. O tremer, com o ousar. O tremer, com o empreender. O tremer, com o confiar. Confiai, senhores. Ousai. Reagi. E haveis de ser bem sucedidos. Deus, pátria, e trabalho. Metei no regaço essas três fés, esses três amores, esses três signos santos. E segui, com o coração puro. Não hajais medo a que a sorte vos ludibrie. Mais pode que os seus azares a constância, a coragem e a virtude.
 
Idealismo? Não: experiência da vida. Não há forças, que mais a senhoreiem, do que essas. Experimentai-o, como eu o tenho experimentado. Poderá ser que resigneis certas situações, como eu as tenho resignado. Mas meramente para variar de posto, e, em vos sentindo incapazes de uns, buscar outros, onde vos venha ao encontro o dever, que a Providência vos havia reservado. 

Encarai, jovens colegas meus, nessas duas estradas, que se vos patenteiam. Tomai a que vos indicarem vossos pressentimentos, gostos e explorações, no campo dessas nobres disciplinas, com que lida a ciência das leis e a distribuição da justiça. Abraçai a que vos sentirdes indicada pelo conhecimento de vós mesmos. Mas não primeiro que hajais buscado na experiência de outrem um pouco da que vos é mister, e que ainda não tendes, para eleger a melhor derrota, entre as duas que se oferecem à carta de idoneidade, hoje obtida. 

Pelo que me toca, escassamente avalio até onde, nisso, vos poderia eu ser útil. Muito vi em cinquenta anos. Mas o que constitui a experiência, consiste menos no ver, que no saber observar. Observar com clareza, com desinteresse, com seleção. Observar, deduzindo, induzindo, e generalizando, com pausa, com critério com desconfiança. Observar, apurando, contrasteando, e guardando.

                                                                 


3. Sobre o Juiz

É  à magistratura que vos ides votar?

Elegeis, então, a mais eminente das profissões, a que um homem se pode entregar neste mundo. Essa elevação me impressiona seriamente; de modo que não sei se a comoção me não atalhará o juízo, ou tolherá o discurso. Mas não se dirá que, em boa vontade, fiquei aquém dos meus deveres.
Serão, talvez, meras vulgaridades, tão singelas, quão sabidas, mas ande o senso comum, a moral e o direito, associando-se à experiência, lhe nobilitam os ditames. Vulgaridades, que qualquer outro orador se avantajaria em esmaltar de melhor linguagem, mas que, na ocasião, a mim tocam, e no meu ensoado vernáculo hão de ser ditas. Baste, porém, que se digam com isenção, com firmeza, com lealdade; e assim hão de ser ditas, hoje, desta nobre tribuna.
           Moços, se vos ides medir com o direito e o crime na cadeira de juízes, começai, esquadrinhando as exigências aparentemente menos altas dos vossos cargos, e proponde-vos caprichar nelas com dobrado rigor; porque, para sermos fiéis no muito, o devemos ser no pouco.

Qui fidelis est in minimo, et in majori fidel est; et qui in modico iniquus est, et in majori iniquus est”.
Ponho exemplo, senhores. Nada se leva em menos conta, na judicatura, a uma boa fé de ofício que o vezo de tardança nos despachos e sentenças. Os códigos se cansam debalde em o punir. Mas a geral habitualidade e a conivência geral o entretêm, inocentam e universalizam. Destarte se incrementa e demanda ele em proporções incalculáveis, chegando as causas a contar a idade por lustras, ou décadas, em vez de anos.
Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade. Os juízes tardinheiros são culpados, que a lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinquente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente.
           Não sejais, pois, desses magistrados, nas mãos de quem os autos penam como as almas do purgatório, ou arrastam sonos esquecidos como as preguiças do mato.

Não vos pareçais com esses outros juízes, que, com tabuleta de escrupulosos, imaginam em risco a sua boa fama, se não evitarem o contato dos pleiteantes, recebendo-os com má sombra, em lugar de os ouvir a todos com desprevenção, doçura e serenidade.
           Não imiteis os que, em se lhes oferecendo o mais leve pretexto, a si mesmos põem suspeições rebuscadas, para esquivar responsabilidades, que seria do seu dever arrostar sem quebra de ânimo ou de confiança no prestígio dos seus cargos.

Não sigais os que argumentam com o grave das acusações, para se armarem de suspeita e execração contra os acusados; como se, pelo contrário, quanto mais odiosa a acusação, não houvesse o juiz de se precaver mais contra os acusadores, e menos perder de vista a presunção de inocência, comum a todos os réus enquanto não liquidada a prova e reconhecido o delito.
          Não acompanheis os que, no pretório, ou no júri, se convertem de julgadores em verdugos, torturando o réu com severidades inoportunas, descabidas, ou indecentes; como se todos os acusados não tivessem direito à proteção dos seus juízes, e a lei processual, em todo o mundo civilizado, não houvesse por sagrado o homem, sobre quem recai acusação ainda inverificada.
 
          Não estejais com os que agravam o rigor das leis, para se acreditar com o nome de austeros e ilibados. Porque não há nada menos nobre e aplausível que agenciar uma reputação malignamente obtida em prejuízo da verdadeira inteligência dos textos legais.

Não julgueis por considerações de pessoas, ou pelas do valor das quantias litigadas, negando as somas, que se pleiteiam, em razão da sua grandeza, ou escolhendo, entre as partes na lide, segundo a situação social delas, seu poderio, opulência e conspicuidade. Porque quanto mais armados estão de tais armas os poderosos, mais inclinados é de recear que sejam à extorsão contra os menos ajudados da fortuna; e, por outro lado, quanto maiores são os valores demandados e maior, portanto, a lesão arguida, mais grave iniquidade será negar a reparação, que se demanda.
            Não vos mistureis com os togados, que contraíram a doença de achar sempre razão ao Estado, ao Governo, à Fazenda; por onde os condecora o povo com o título de “fazendeiros”. Essa presunção de terem, de ordinário, razão contra o resto do mundo, nenhuma lei a reconhece à Fazenda, ao Governo, ou ao Estado.

Antes, se admissível fosse aí qualquer presunção, havia de ser em sentido contrário; pois essas entidades são as mais irresponsáveis, as que mais abundam em meios de corromper, as que exercem as perseguições, administrativas, políticas e policiais, as que, demitindo funcionários indemissíveìs, rasgando contratos solenes, consumando lesões de toda a ordem (por não serem os perpetradores de tais atentados os que os pagam), acumulam, continuamente, sobre o tesoiro público terríveis responsabilidades.

 
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NOTA : Excerto do livro de Rui Barbosa, "Oração aos Moços"  , com inclusão de subtítulos e  gravuras nossos, com o fim de sistematizar os temas.  

Trata-se de uma carta que tem como tema a ética profissional.
BARBOSA, Rui. Oração aos Moços . São Paulo (SP): Martin  Claret      Ed., 2004

 
"Em 1920, Rui Barbosa fora convidado a paraninfar a turma de Direito da Faculdade do Largo de São Francisco, mas fora impedido de comparecer devido sérios problemas de saúde. O célebre advogado, jornalista e político envia, então, a turma um discurso que redigiu em março de 1.921. No texto, o autor faz um balanço de sua vida, uma síntese de sua maturidade intelectual e discorre sobre o papel do magistrado e a missão do advogado, para que sirva de exemplo para todos que pretendem seguir tal ofício. O discurso é, então, lido pelo professor Reinaldo Porchat na colação de grau da turma.
No ápice de sua vida profissional, ao completar cinquenta anos de carreira jurídica, a intenção de Rui Barbosa nessa obra é transmitir suas experiências positivas e negativas, ideias, reflexões e conselhos àqueles que estavam iniciando a prática jurídica."

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