CRÍTICA AO ESTATUTO DA CRIANÇA
E DO ADOLESCENTE - E C A
O Estatuto da Criança e do
Adolescente, de 1990, expressou um
grande avanço na doutrina de atendimento à infância e à juventude,
transportando para a legislação especial
os princípios da “doutrina da proteção integral” adotada pelo Brasil desde a ratificação
da Convenção sobre os direitos das crianças, anteriormente à própria
Constituição de 1988, onde foram expressamente incluídas (art. 227).
Contudo, cabem, a nosso ver, críticas quanto à sua execução, talvez não
exatamente as mesmas feitas ao Código de Menores de 1979, mas sob o mesmo fundamento:
não há uma política em concreto para a sistematização das medidas descritas na lei especial.
A
principal medida em concreto deveria ser a criação e provimento de um órgão do
Executivo para a coordenação das
medidas previstas, com poder de mando :
a doutrina da proteção integral é fundada na responsabilidade do Estado em
relação à formação da sua infância e juventude. Tratando-se de um Estado
Nacional, embora federativo, há de se
supor a necessidade de uma integração entre todas as formas
de manusear as soluções para
pontos de deficiência
na sociedade , de maneira integral, no
trato da educação da infância e da juventude. Da forma como está no Estatuto, nota-se a necessidade de uma
regulamentação. Muitas atividades se encontram
colocadas em forma um tanto quanto difusa, distribuída a entidades para as quais não são exigidas
condições técnicas, como os Conselhos Tutelares
(art. 131) e, ao mesmo tempo,
retirando-se os Centros de Triagem, Observação e Permanência, não há um órgão administrativo que possa proceder a
uma separação, e a sua manutenção, entre os adolescentes objeto de internação
antes da decisão final no processo, na qual podem ser inocentados, e aqueles já em fase de
cumprimento de uma sentença definitiva — ocorre, pois, em caso das crianças e adolescentes que tanto se
quer proteger, o mesmo problema
observado , em determinados locais, quanto aos adultos, onde nos mesmos
estabelecimentos prisionais são colocados
indistintamente elementos de
maior e menor periculosidade penal.
É bem verdade que os antigos centros de encaminhamento do menor para internação,
inicialmente o SAM e, depois , a FUNABEM, não alcançaram a finalidade para a qual foram idealizados, tornando-se , até
mesmo, perniciosos à obtenção de resultados positivos : contudo, isso não se deveu às orientações legislativas, mas, isto sim, à
péssima execução das medidas orientadas pela legislação, que se fez sem técnica
especializada, por leigos indicados
por designação política, e com
funcionários despreparados, que se transformaram, com o tempo, em algozes e não educadores e encaminhadores de
personalidades em formação. Esse é o nosso receio que ocorra também agora, de uma forma mais difusa e mais
difícil de ser detectada, através
de uma indicação pelo próprio corpo social, de pessoas para as quais também não se exige
o preparo técnico que o encargo , bem mais um “múnus público”,
exige, no trato de seres tão
desprotegidos.
1ª.
- A transformação dos Juizados da Infância e da Juventude em Juízos Colegiados,
compostos por um juiz togado e
pelo menos dois leigos, sendo um com especialidade técnica que englobe Pedagogia, Educação e Psicologia
Infantil, e outro indicado pela Ordem dos Advogados do Brasil, porque :
a
- trata-se , o encaminhamento e educação da juventude, de matéria
de interesse estratégico de Estado, visto que esse contingente de seres
humanos, em desenvolvimento físico,
mental e psicológico , é o alicerce do futuro
da própria Nação e deve ser
encarado pelos governantes de uma maneira prioritária, sendo o Direito do
Menor, em nossos dias, em consonância com a moderna doutrina da “proteção
integral” em nosso país e na maior parte das nações civilizadas, de uma abrangência que vai muito além daquelas situações de abandono material pela
sua família, envolvendo áreas muito
diversificadas do conhecimento, até mesmo de relações internacionais;
2ª.
– Exigência, para assumir o cargo de Juiz da Infância e da Juventude (togado) e
de Promotor de Justiça em exercício nos respectivos juízos de primeiro grau, de
especialização em Direito do Menor e de
noções de Psicologia, Pedagogia, e
Psicologia Infantil, em cursos a serem ministrados pelas Escolas Nacionais ou Estaduais da
Magistratura e do Ministério Público, tendo-se em vista que :
c
- o curso de especialização nas Escolas Superiores da Magistratura e do
Ministério Público, a nosso entender, atenderia à necessidade de implantação
imediata de juizados adequados à demanda
técnica em matéria tão específica, para pessoas
com conhecimentos jurídicos
demonstrados em concurso e que
realmente estivessem decididas a essa
nobre e envolvente matéria; e, por outro lado, não haveria, nem para as Escolas
da Magistratura, nem para as do
Ministério Público, a mesma burocracia exigida
para a regulamentação de um curso em uma Universidade regular, junto ao
Ministério da Educação, dada a singularidade da legislação pertinente a elas.
Embora o Código de
1979 estabelecesse, em seu
art. 9º., a existência de centros especializados de triagem e
observação , o que dava a idéia de uma atividade anterior à fase de execução, os que foram criados e
tiveram vida jurídica, não exerceram, na
prática, essa finalidade — o estudo
social, médico e psicopedagógico do educando . O Estatuto de 1990
não contempla essa
função ao órgão de internação , pois que o juiz, ao aplicar a medida ao adolescente, em sentença ,
deverá estabelecê-la já levando
em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade
da infração (§1º. do art.112) – é bem verdade que alicerçado em pareceres técnicos, mas
constituindo um acúmulo de responsabilidades para um único ato em uma única fase processual,
quando para o delinquente adulto é
reservado um tratamento de execução
diferenciado da fase cognitiva. Os critérios
exigidos para os estabelecimentos
onde se dará a medida são apenas os do art. 123: “A internação deverá
ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele
destinado ao abrigo, obedecida rigorosa
separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração”.
Não há, pois, na lei especial em vigor ,
a determinação de um tratamento
diferenciado entre quem esteja
provisoriamente internado na fase cognitiva ,
e aquele cumprindo decisão
definitiva com possibilidade de um convívio prejudicial ao primeiro – no caso
presente, embora não haja uma centralização como a ocorrida no passado, não
existe um órgão centralizador
do acompanhamento da atividade tecnicamente uniforme à execução das
medidas preconizadas no Estatuto.
O
Estatuto da Criança e do Adolescente
destinou aos juizados especiais para assuntos de menores de idade uma gama
enorme de atribuições de administração pública, apropriada a políticas de governo, muito mais do que à administração da justiça. É bem verdade que se
indaga, a nível da filosofia do direito, qual a extensão da noção do justo em
comparação com o legal. Mas a função do magistrado,
e do membro do Ministério Público, de fazer cumprir a lei, fica demasiadamente
exposta desde que ele deva tomar a si as
providências que dizem respeito a
aspectos de problemas sociais, cuja
solução não incumbe ao Poder Judiciário
como função institucional. A
concretização da proteção integral, dentro de um modelo de
responsabilidade social adotado pelo Brasil, não pode ser
colocada em mãos de apenas um responsável, o Juiz, cuja infraestrutura funcional não lhe fornece meios financeiros e
de pessoal para reformar uma
realidade social : somente um órgão com
dotação orçamentária ampla, com autoridade administrativa suficiente
para influir na condução de outras áreas
da administração federal que coordenam as políticas dos desenvolvimentos
regionais e nacionais, tem a condição estrutural de atender à máxima
estabelecida, por exemplo, no art. 4º., parágrafo único , alíneas “c” e “d” ,
em consonância com os artigos 94 e 98 . E nem ao Conselho Tutelar, pela sua
composição não técnica e pela
falta de capacidade de mando, pode-se entender que o legislador desejou
delegar essa competência.
Tomemos
um exemplo em concreto. Em uma grande cidade, como Rio de Janeiro ou São Paulo,
havendo uma criança, ou várias, com seus pais, que não têm condições
financeiras para pagar planos de saúde,
mas são pessoas muito honestas, imprimindo ao seu lar as condições ideais
de desenvolvimento psíquico dos seus
filhos, é possível que o Juiz da
Infância e da Juventude tenha condições
de fazer o seu encaminhamento
prioritário para atendimento em um
hospital municipal ou federal — mas são
milhares de crianças nessa situação e se o Estado administrador não tiver dado as condições necessárias do nosocômio para fazer o
atendimento, não terá o magistrado uma
fórmula legal para conseguir o que determina o inciso III, do parágrafo
único do artigo 100. Se esse mesmo exemplo se aplicar a uma
criança, nas mesmas condições, em uma cidade pequena, onde não haja
recursos suficientes, sequer um plano de
saneamento básico, então será impossível
a atividade judicial – os atos serão reduzidos a termo, ordens serão
expedidas a órgãos e pessoas inexistentes! E estará , em qualquer caso,
imperando ainda a grande diferença social que
tem nos caracterizado ao longo de
muitos anos. O problema a se resolver, é de infraestrutura social, de
competência do Poder Executivo e, não, do Judiciário.
A
propósito, um comentário da UNICEF:
“Onde a maioridade penal for especialmente alta, como 17 ou 18 anos, é
possível que o sistema de justiça juvenil do país seja em grande parte voltado
para o bem-estar do jovem. Em tais sistemas jurídicos , não se diz que crianças
e adolescentes cometeram um “crime”, já que todo o comportamento da criança é
visto como um assunto social, educacional e ligado ao bem-estar.
........................... Onde a maioridade penal for mais baixa, é mais
provável que os sistemas legais do país façam uso de juízes e tribunais para
crianças e adolescentes.” [(Tradução livre) Manual da UNICEF, páginas 27 a 28 – (Manual
para a Medição dos Indicadores da
Justiça Juvenil - United Nations, Office on Drugs and Crime- The Indicators).
Entendo, há algum tempo, pois, a necessidade de um
órgão diretamente vinculado à
Presidência da República, especificamente uma Secretaria de Governo, agora com
mais urgência, dado o elevado grau de periculosidade das situações sociais em relação aos menores, notadamente o
problema das “drogas ilícitas”, da pedofilia e da desagregação familiar. Tal
órgão seria encarregado: (a) da fiscalização e coordenação de todos os
órgãos e colegiados envolvidos na política da infância e da juventude, integralizando a proteção geral ,(b)
de atividade abrangente de todo o país,
com recursos previstos no
Orçamento anual, (c) de apresentar Planos Anuais e Plurianuais de apoio à
infância e à juventude, e (d) de
manter inter-relacionamento funcional estreito com todos os Ministérios, Governos dos
Estados e dos Municípios, com atividades afins a essa política. E para esse entendimento encontro respaldo nas recomendações
da UNICEF , dentre as quais as
seguintes, mais específicas sobre o tema
analisado :
Manual para
a Medição dos Indicadores da Justiça
Juvenil
Nações
Unidas – Escritório para Drogas e Crime – Os Indicadores – pág. 25
[Tradução
livre do texto - United Nations,
Office on Drugs and Crime- Manual for
Measurement of Juvenile Justice Indicators – p.25 – encontrável no “site” acessível na Internet pelo endereço
|
|
Padrões
Internacionais
Aplicáveis
|
• Os Estados Membros se
empenharão em desenvolver condições que assegurem para a juventude uma vida significativa na comunidade, que ,
durante este período da vida,
em que ela ou ele é mais suscetível de comportamento desviante, vão
fomentar um processo de desenvolvimento pessoal e educação , tão livre
do crime e da delinquência quanto possível.
•Planos de prevenção compreensiva
deveriam ser instituídos em
todos os níveis do Governo e incluir o seguinte :
a) análises profundas do
problema e inventário dos programas;
b) responsabilidades bem definidas para agências qualificadas , instituições e
pessoas envolvidas nos esforços de
prevenção;
c) mecanismos para a
coordenação apropriada dos esforços de prevenção;
d) fiscalização, programas e estratégias baseadas em estudos de prognósticos a serem continuamente
monitorados e cuidadosamente avaliados;
e) métodos para reduzir
efetivamente a oportunidade de cometer atos delinquentes;
f) envolvimento da comunidade através de uma larga gama de serviços e programas;
g) cooperação interdisciplinar
bem próxima;
h) polícia de prevenção e
processos sobre a participação da
juventude na delinquência;
i) pessoas especializadas em todos os níveis (PJD, artigo 9);
Como um Indicador Político, esse indicador mostra quando existe um plano para a prevenção da delinquência infantil.
Planos para prevenir a entrada das crianças em conflito são
normalmente formulados no nível
central de governo. A legislação
e as políticas de governo , padrões e
diretrizes deveriam ser
examinados para verificação da
existência de um plano de prevenção da existência de conflitos com a lei
sobre menores. Fontes de informação
no governo central deveriam confirmar a existência de um plano e sobre a estrutura desse plano.
Um plano de prevenção deve incluir, tipicamente, programas ou
políticas para :
- apoio às famílias
para proverem a subsistência de
seus filhos;
- desenvolvimento de redes de comunidades-base para crianças
vulneráveis;
- apoio de padrões flexíveis de trabalho para pais e
serviços para famílias de pouca renda;
- treinamento para
oportunidades de trabalho ou
orientação vocacional para crianças;
- abolição de castigos corporais e redução da violência doméstica;
- prevenção de abuso de
drogas, álcool e outras
substâncias por crianças;
- oportunidades de educação
que ofereçam uma alternativa ou adição
ao currículo escolar regular;
- esporte e atividades culturais para crianças ; ou
- divulgação de informações sobre os direitos das crianças.
Para bem qualificar esse
indicador, deveria ser feito um plano de prevenção , no mínimo, existente em uma lei ou política de governo
, e contendo mecanismos para sua
implementação e coordenação.
|
Nós
que trabalhamos sob a égide
da lei de 1927 e depois acompanhamos as duas que a sucederam, pudemos observar , no espaço de
tempo decorrido entre elas, o agravamento dos problemas existentes e o surgimento de outros, no âmbito dos
menores, não só nas comunidades onde
vivem as famílias de pouca renda, mas em todos os estratos sociais, quer em
grandes metrópoles, quer em cidades pequenas. São fatos que não podem ser contornados ou resolvidos pelo Poder
Judiciário, pois este não pode influir sobre a sua origem, que
não está afeta à condição da administração da justiça, mas, sim , a
políticas de governo que acompanhem as
realidades existenciais da nova sociedade industrial e tecnológica , em um
consumismo crescente – lembrando-nos, sempre, de que é interesse prioritário
do próprio Estado zelar pela boa formação física, cultural e moral das futuras gerações que irão comandar os rumos
da Nação.
Nos próximos
títulos deste trabalho apresentamos
uma análise da problemática da
delinquência infantil e juvenil, suas origens e evolução na sociedade atual e sugestões a médio, a curto e a longo prazos, a nível sociológico, antropológico e psicológico
, de soluções possíveis, em um tratamento multidisciplinar
e interdisciplinar. A situação de perigo
a que estão expostos nossos jovens ocorre
em razão de um complexo de causas
de profundas cisões no seio da sociedade, e sua solução passa muito profundamente pela necessidade da implantação de um código moral e ético que
atenda os novos desafios do ser humano de sobreviver como espécie em face da quebra de
antigos paradigmas sociais e dogmas
religiosos, frente às descobertas científicas e da falta de perspectivas
que enfrenta a nossa juventude, como um
todo planetário.
Nossos
jovens, em sua grande maioria, na sua rotina de vida no lar, não só no Brasil,
mas em todo o planeta, não podem contar com o auxílio dos membros mais velhos
das famílias: pois estes necessitam
estar distantes para prover o suprimento dos bens de consumo, e se encontram perplexos diante das mesmas
indagações existenciais, sem respostas
satisfatórias para o encontro de novas perspectivas para a nova geração, até
mesmo pela falta de tempo para dedicar-se a esse setor da psique humana. Intenta-se
provar, ao final, que a falta de
recursos financeiros das famílias não é uma variável exclusiva
para uma situação de perigo a que estão expostos não só os menores , mas o todo familiar. Muito embora ela possa ser facilitadora – tão facilitadora
quanto a falta da fiscalização contínua
e da presença física
paterna e materna na educação de
sua prole, esta ocorrente em todos os níveis econômicos da sociedade moderna.
Em
que pese todo o esforço despendido pelos
Juízes da Infância e da Juventude ,
e pelos Promotores de Justiça, pelos
Defensores Públicos e pelos Advogados, se não existe uma política de
governo administrada por um órgão central
com recursos suficientes para a
aplicação em todo o território nacional, não
há como darem conta da tarefa hercúlea que lhes impôs o novo Estatuto da Criança e do Adolescente.
E nem é justo que se lhes destine, ao final, a responsabilidade por não ter sido conseguida a proteção integral abraçada na Constituição Federal.
Por
outro lado, a complexidade dos conhecimentos humanos, que se reflete nas
relações sociais , estão a exigir um tratamento multidisciplinar na solução da problemática
da delinquência juvenil – até mesmo porque a criminalidade adulta, para a qual
se dirige aquela, já se encontra também multidisciplinarizada. E por isso é
necessária a complementação da formação
dos profissionais que tratam diretamente com esse componente social , com um acréscimo , à sua formação
profissional específica, de conhecimentos
razoáveis em pedagogia e psicologia
infantil - as nossas crianças de hoje apresentam um desenvolvimento intelectual
que está a exigir uma correspondência
nos adultos encarregados de seu acompanhamento, sob o risco de não conseguirem impor a necessária confiabilidade nas providências que devem tomar a seu
respeito, por estarem defasados das suas
realidades e de seus anseios.
Essa
preocupação é decorrente do fato de se tratar,
o universo de indivíduos sujeitos
à lei especial, de possuidores de
“status sui generis”, por não
terem condições de entendimento integral dos fatos
e ocorrências a que estão
submetidos ou de se conduzirem de acordo com esse conhecimento. Um outro
complicador se oferece à delinquência juvenil nos dias de hoje : embora em
situação de perigo físico, emocional ,psicológico ou moral, dado o seu fácil
acesso às comunicações, as crianças e jovens se encontram detentores de conhecimentos
tecnológicos das modernas descobertas
científicas, que nem todos os adultos profissionais, excelentes em determinado setor, conseguem acompanhar –
e essa disponibilidade tecnológica,
em conjunto com a fragilidade social, pode se constituir em uma nova fonte
facilitadora de delinquência juvenil.
Mas já
temos um progresso grande — o
Estatuto da Criança e da Juventude demonstra, em tese, a vontade atualizada de lidar positivamente com o problema, seguindo
todas as orientações da Convenção Internacional sobre os direitos das Crianças, promulgada pelo Decreto nº. 99710/90.
Aponte-se,
por oportuno, a grande preocupação do legislador constituinte brasileiro,
ao introduzir, em 1988, os princípios da
Convenção sobre os direitos das crianças, mesmo antes da sua promulgação, no art.227 da Carta
Magna. Contudo, entendo faltar ainda a
realização, “in concreto” de
medidas destinadas à sua execução, posto que o ECA é mais uma legislação
enunciativa . Essa concretização deve começar pela destinação
de verbas especiais no orçamento
da União, dos Estados e dos Municípios, para a implantação de uma política nacional, coordenada
pelo Poder da República
encarregado da administração da Nação. É mais uma etapa que devemos galgar, no Brasil,
para podermos chegar, em futuro
não muito distante, a realizações positivas
no campo da assistência à nossa infância e juventude. Invoco o testemunho
filosófico de Marilena Chauí, para embasar essa minha afirmação :
"Se
nascemos numa sociedade que nos ensina certos valores morais -- justiça,
igualdade, veracidade, generosidade, coragem, amizade, direito à felicidade --
e, no entanto, impede a concretização deles porque está organizada e estruturada
de modo a impedi-los, o reconhecimento da contradição entre o ideal e a
realidade é o primeiro momento da liberdade e da vida ética como recusa da
violência. O segundo momento é a busca de brechas pelas quais possa passar o
possível, isto é, uma outra sociedade, que concretize no real aquilo que a
nossa propõe no ideal.(...)O terceiro momento é o da nossa decisão de agir e da
escolha dos meios para a ação. O último momento da liberdade é a realização da
ação para transformar um possível num real, uma possibilidade numa
realidade"(Chauí, p. 365).
Não
se deve entender , com essa sugestão, que será dispensado o corpo técnico
previsto no ECA para assessoria às Varas
especializadas em problemas da Infância e da Juventude : não se pode
exigir de um único indivíduo o
conhecimento multidisciplinar
profundo, para a solução da problemática do menor. Trata-se de um
assunto que envolve , por sua natureza, a concorrência de equipes
que completem , em suas respectivas áreas técnico-científicas, a resposta à implantação de medidas adequadas ao
acompanhamento da evolução psíquica e
moral do indivíduo cujo caráter está em formação, entendendo até que ponto falhou
a família e como lacrar essa lacuna : devem existir equipes
criminológicas, quer em Centros de
Assistência e Proteção dos Menores ,
quer em Conselhos Tutelares (os primeiros, órgãos
estatais previstos no revogado Código de Menores e , os
segundos, estabelecidos pela própria sociedade, não jurisdicionais, previstos no
Estatuto da Criança e do Adolescente).Essas equipes devem estar acompanhando efetivamente os trabalhos
do Juiz, durante todo o processo
e lhe dando, no seu curso e ao final,
antes da sentença, parecer sobre a
personalidade do sujeito do
mesmo, e a natureza das causas,
endógenas ou exógenas, do desvio de sua conduta, com recomendação dos melhores
métodos e medidas a serem aplicados, nos termos da lei, para a devida correção,
a par das outras tecnologias envolvidas
nessa pesquisa – eis que um indivíduo em formação é não somente
autor de um fato que se presume
desviante, mas também vítima
das circunstâncias sócio-antropológicas
vigentes na sociedade a que
pertence e que o condicionam ao comportamento observado. Comportamento esse que
nem sempre é indicativo de uma
maior ou menor periculosidade do ato ou
do autor, mas representa uma resposta desesperada a
circunstâncias acima do seu
entendimento e fora e seu controle,
que o arrastam para respostas nem sempre adequadas, se examinadas de um ponto de vista de um indivíduo já
formado, adulto. Respostas estas
que mais indicam o dano
que está sendo causado a ele,
e, portanto, mais vitimizado do que
desvirtuado.
É
deveras lamentável que não se haja, ainda, atentado para essa particular vitimização da sociedade como um
todo, pois o menor é participante ativo da vida nacional, como componente dessa sociedade, mesmo ainda em período de formação física e moral —
principalmente porque o problema dele, quando o desvio de conduta se dá em
larga escala, é um indicador de que
alguma coisa está errada na base do
corpo social inteiro e não apenas
naquele específico contingente. A solução do problema do menor, pois,
além de merecer um atendimento
especializado, indica também a necessidade da revisão de determinados
comportamentos sociais que estão na sua
origem. E, para tanto, são necessárias
medidas que, por divisão de poderes constitucionalmente determinada, vão muito além das
regularmente destinadas a se imporem pelo Poder Judiciário .
A nosso ver, necessário seria , desde já, dar-se uma ênfase nesse ponto
tão essencial para o futuro mesmo da Humanidade como espécie, pois o problema da
proteção ao menor não é uma singularidade brasileira. A aplicação de mecanismos
de técnica psicopedagógica, acelerando-se
os procedimentos necessários para sua implantação, em todas as áreas do Governo,
federal, estadual e municipal, que se coadunem com o espírito da legislação
atual, impõe-se, pois um bom
planejamento ideológico muitas vezes falha porque lhe falta uma boa técnica ao ser aplicado.
Por
outro lado, entendo que o
estabelecimento de prazos fatais para aferição das medidas a serem aplicadas às
pessoas em formação, também é um procedimento perigoso, pois nem todos respondem com a mesma rapidez aos estímulos recebidos e, por vezes, parar
um processo de recuperação da personalidade antes de seu final pode trazer consequências
piores do que não o iniciar . A
propósito, comentário do Professor Rogério Greco:
"Uma vez completados 18 anos, o
agente torna-se imputável, podendo-se atribuir-lhe uma sanção penal. Assim,
no primeiro minuto da data de seu aniversário,
independente da hora em que nasceu, o agente adquire a maioridade penal com
todas as implicações dela decorrentes". [grifo
nosso.] (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 6ª. ed. Rio
de Janeiro: Ed. Impetus, 2006, pág.428).
É
de se ressaltar, ainda, que essa atitude , de não imposição do método
científico à aplicação de procedimentos em relação à prática da lei de menores , vem contrariar
as diretrizes que norteiam os princípios da aplicação da pena, no Código Penal,
onde o respeito à personalidade do delinquente (que já superou a idade juvenil)
é dado de muita importância – isso é decorrência de
um acurado estudo antropológico e
criminológico, que não se estendeu, ainda, ao ser infanto-juvenil. O art. 387, item IV, do
Código de Processo Penal, é um exemplo
que se aplicaria com muito mais
razão ao Estatuto da Criança e do
Adolescente, pois estes têm muito mais possibilidade de recuperação do
que um adulto (item inserido no art.
387, inciso IV, do Código de Processo Penal em vigor, pela Lei nº. 6.416, de 24
de maio de 1977: obrigatoriedade do juiz
de declarar, na sentença, “se presente, a periculosidade real” e
imposição das “medidas de segurança que no caso couberem, se existentes”). No que se refere ao indivíduo em formação, um laudo
de especialistas indicaria as
medidas aplicáveis, caso a caso, em
concreto, não se apreciando tão só
a conduta, em si : nesse particular, o estudo de fatores exógenos, tais
como o ambiente familiar em
que menor mantinha convivência antes
e durante o fato, e do meio ambiente social que o cerca, a par de fatores
endógenos , já indicaria, desde o início, até onde a família natural ou substituta deve ser cogitada ou deve estar preparada para aplicar
as medidas necessárias.
E, por outro lado, a remissão, prevista no art. 126 da lei
especial , apesar de ser causa de exclusão
(competência do Ministério Público) ou
suspensão ou extinção
(competência do Juiz) do processo,
não implica em afirmar inexistência de uma particular periculosidade, por
fatores exógenos ou endógenos, por isso mesmo havendo a possibilidade de aplicação de eventuais medidas
previstas no mesmo instrumento legal —
como um reconhecimento, sim, de
necessidade de um tratamento especial a determinados remissos, em outras palavras, de medidas de
segurança.
Qual
será a pior
injustiça social : submeter-se
alguém , já adulto, com presunção legal
de responsável , ou um jovem inimputável a processo onde está em jogo seu direito à
liberdade, sem as garantias mínimas constitucionais? Ou em corolário, não se cercar
o processo aplicável aos
menores de idade das
mesmas ou maiores garantias ou medidas
de segurança indicadas para
os adultos?
Ressalte-se, em resposta, que o
adulto, ao adquirir a maioridade civil e penal, torna-se partícipe
do pacto social e,
portanto, obrigado a cumprir e fazer
cumprir as leis estabelecidas
pelo Estado, que, por seu lado, tem o direito e o dever de
exigir-lhe tal conduta, porque já será, então, plenamente responsável. No caso
da criança ou do adolescente, se
o Estado não lhes reconhece a aptidão do
indivíduo participante do pacto
social, tem a
obrigação de zelar pela
sua formação, substituindo-o, por
ser entendido como irresponsável
ou inimputável, perante a
sociedade. E nesse processo de
substituição, o seu dever de
bem encaminhar a sua criança e
adolescente para a plena
cidadania se coloca acima da
célula familiar. E se essa é falha, em um contingente considerável,
incumbe-lhe substituir-se a ela, ou substituí-la por
outra forma adequada de
intervenção que melhor atenda aos interesses da coletividade e
do indivíduo, em si. Não
lhe sendo possível exigir o que
reconhece não ter direito de exigir,
incumbe ao agente ou Estado, criar
e oferecer as condições de exigibilidade àquele que de futuro será o
seu paciente (o indivíduo em formação). Ou então, terá criado uma situação
de incongruência, pois parece
descuidar da formação para
aguardar o momento da punição. E ,
neste caso, a idéia
de recomposição da paz
social e da ressocialização
do indivíduo infrator
não é conseguida, pois a infraestrutura, no passado, à época em que
se forma a individualidade, foi descuidada, e não há
mais condições de reestruturação da personalidade que delinquiu.
Em outro ponto de vista, embora haja
a previsão da remissão, no Estatuto da Criança e do Adolescente ,
instituto análogo ao perdão judicial , do Código Penal,
não se previu , no primeiro caso, a adoção de medidas de segurança. E,
embora seja previsto para os menores,
na lei vigente, a aplicação
do Código de Processo Penal, a imposição dessas medidas somente poderia
ser feita se prevista expressamente no ECA, em razão
da proteção constitucional dos
direitos humanos. Sim, porque há de se convir que não se deve idealizar o menor
u, para aquilatar da conveniência dessa medida — não em caráter de medida
judicial, mas administrativa. Se não houver um acompanhamento da evolução
estrutural da personalidade do jovem
embrionariamente em situação
irregular, há o perigo de haver uma
influência nefasta sobre ele pelo meio onde vive, dada sua fragilidade
pessoal, um incentivador de comportamento desviante. Em casos
de remissão, apesar de não haver uma
sentença condenatória, ainda assim o
Estado tem obrigação de zelar pelo futuro do seu cidadão, até como proteção de sua soberania – mas não o
Juizado da Infância e da Juventude, pois o assunto não chegou a ser objeto de execução.
O indivíduo em formação, não encontrando no seu
meio natural a proteção devida, tem o direito constitucional de receber
diretamente do poder público o
atendimento a suas necessidades de um sadio desenvolvimento, não sendo para
isso necessária a prova de um
comportamento infracional, até, em contrário, antes dele – daí a necessidade de
um órgão da administração do
governo estar em coordenação de programas de proteção ao menor. Mas por outro lado , a
sociedade organizada tem também o direito de ser protegida. E, se o
poder público não oferece
condições materiais para educar,
em sentido amplo e estrito, o menor de idade sob sua soberania, é certo
que muito menos
as terá para a reeducação do adulto perigoso em que ele poderá se
transformar —essas condições de educação e reeducação devem ser, mais especificamente, oferecidas em instituições
apropriadas a essas finalidades,
não só visando à recuperação do paciente, mas também à preservação da liberdade de ir e vir da coletividade.
É até mesmo uma questão de
economia de recursos públicos e de defesa de sua soberania e status
perante as outras nações, num
mundo globalizado, como o nosso, que o Estado deva hoje investir pesado
em educação infantil e
juvenil. E essa educação não é só no sentido de destinação de
conhecimentos, mas de uma transmissão de normas
de comportamento adequado ao convívio social, de forma a permitir a paz
e a harmonia no contexto nacional e internacional.
Nota : Esta postagem é a cópia fiel de páginas 90 a 105 do livro "Delinquência Juvenil - Infraestrutura da Criminalidade Adulta", de autoria de Lia Pantoja Milhomens. Ed. In-Fólio. Rio de Janeiro, 2011. Cap. 3 - Evolução da legislação internacional de menores no Brasil, letra e) Crítica ao Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, ilustrações introduzidas pela autora para a publicação no Blog.